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“Churrascada: Raízes e memórias viram churrasco no Parque da Água Branca”

A festa de 10 anos do restaurante Fazenda Churrascada expôs conflitos entre concessão privada, preservação ambiental e uso comunitário do Parque da Água Branca

5 de setembro de 2025

Texto: 

Vito Ilegas (@._ilegas)

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@holovaty.fotos

O Parque da Água Branca, fundado em 1929 e tombado desde 1996, em São Paulo, carrega forte valor histórico e ambiental. Trilhas, bosques e espécies de aves e mamíferos convivem com os frequentadores, em um espaço que há quase um século funciona como pulmão e refúgio da cidade. Mas, desde que foi entregue à iniciativa privada, o parque virou campo de disputa entre interesses públicos e empresariais.

Quem dá mais pelo boi?

O processo de concessão começou em um leilão em 2022. Em março, o resultado mostrou a Reserva Parques como vencedora, após arrematar a gestão dos parques Villa Lobos, Cândido Portinari e Água Branca por mais de R$ 62 milhões.

Uma das atribuições da concessionária é autorizar, junto ao Conselho Orientador do Parque, empreendimentos e eventos no espaço. O conflito ganhou corpo com a instalação do restaurante Fazenda Churrascada nos cocheiros históricos — antigas baias de cavalos, área tombada e símbolo do parque.

Nova brasa, novos negócios

No segundo semestre de 2024, a Fazenda Churrascada foi comprada pela holding Heat Group, que anunciou um plano agressivo de expansão: abrir de 30 a 40 novas unidades da marca. A instalação no Parque da Água Branca pode ser vista como um dos símbolos desse movimento. 

Curando a carne

O Conselho Orientador denunciou a instalação com três acusações principais:

Alterações do patrimônio histórico, como troca de pisos, retirada de peças originais e mudanças nos jardins;

Desvio de finalidade do bem público, quando um espaço coletivo vira ativo comercial;

Descaracterização do parque, por mudanças que alteram permanentemente sua identidade.

A denúncia motivou uma ação popular. Segundo Regina, membra do Conselho Orientador e uma das vozes mais ativas na luta, tratava-se de um ato de resistência “contra o abuso da privatização”.

Em maio, a 16ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, sob o juiz Márcio Ferraz Nunes, concedeu decisão liminar suspendendo as obras. A reportagem do Metrópoles detalhou que o veto ocorreu porque os trabalhos estavam sendo feitos sem autorização dos órgãos de patrimônio (Condephaat e Conpresp). O juiz citou risco de dano irreparável ao patrimônio tombado e aplicou multa.

Pouco tempo depois, o veto foi revertido. A Justiça aceitou os pareceres de órgãos técnicos — Condephaat, Cetesb e Secretaria do Verde e Meio Ambiente — e liberou o funcionamento por seis meses, ainda que sem aval do Conselho Orientador, exigência prevista no decreto de concessão.

Até a publicação desta matéria, a Heat Group, dona da Churrascada, não respondeu quais mudanças foram feitas no projeto para reverter o veto.

Foto: Reprodução/Instagram

Denúncia da associação de bairro de Perdiões no Parque da Água Branca. Foto: Reprodução/Instagram

Corte do açougueiro

O restaurante inaugurado em 18 de agosto, foi flagrado funcionando em dias e horários não permitidos, além de realizar um evento não autorizado no dia 21. Mas o ápice foi o festival “Churrascada: Memórias e Raízes”, que nos dias dias 23 e 30 de agosto, celebrou os 10 anos da marca.

Multidões, fumaça e som alto ocuparam uma Zona de Proteção Ambiental. Conselheiros acusaram a organização de descumprir normas ambientais.

A responsável pelo evento foi a DC Set Group, que também controla a Reserva Parques. Essa sobreposição levantou suspeitas: uma mesma empresa que administra o espaço público organiza também eventos comerciais de grande porte dentro dele. Não é ilegal, mas expõe um conflito de interesses evidente. O espaço tombado, antes destinado ao uso comunitário, virou fonte de receita privada.

Até agora, a DC Set não se manifestou sobre as acusações de infrações ambientais.

Conflito entre interesses públicos e privados ganha materialidade quando peças de carne são expostas a céu aberto em meio à Parque com história e proposta de preservação ambiental. Foto: Divulgação

Sangue no chão do açougue

No último dia da festa, dezenas de manifestantes vestidos de preto ocuparam a arquibancada em frente ao evento, gritando “Fora Concessão!”. Carregavam cartazes com nomes de animais e plantas do parque.

Dona Iara, uma moradora que cultiva sua territorialidade na Barra Funda por décadas, compartilhou a importância desse tipo de manifestação: "É extremamente necessária, porque esse parque é uma preciosidade para a cidade". Envolta de lembranças e a emoção de quem viveu 82 anos ali, ela ainda desabafa: "Criei minha filha aqui e dói tanto ver o que ele [o parque] se tornou, que eu nem consigo ficar por muito tempo.”

Pedro, representante da sociedade civil que auxilia o Conselho Orientador nas questões jurídicas, foi direto:  “Haviam 3 mil animais aqui. Mandaram 2000 embora e os outros mil prenderam.”

Ele se refere às aves que antes circulavam livremente e hoje estão confinadas, além da derrubada de árvores. O Ministério Público abriu um inquérito civil para investigar.

Pedro também acusa os órgãos fiscalizadores de “flexibilizarem” a vigilância: “Mandaram o fiscal embora e enviaram um sem ARD válida.”

Até o fechamento da matéria, a Conpresp, responsável pela fiscalização do patrimônio, não comentou o caso. Sobre o evento, a Arsesp, agência reguladora de serviços do Estado disse que, “a autorização foi concedida com condicionantes específicas, estabelecidas pela Arsesp e pela Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil)” e afirmou ter feito vistoria no dia e local do evento, permanecendo “monitorando o cumprimento das exigências determinadas”.

Ossos duros de roer

Além do restaurante, outras concessões mudaram a rotina do parque. Um estacionamento privado ocupou um antigo parquinho infantil. A Casa Cor tomou o Casarão Central, sede do Grupo Escoteiro Tiradentes 107 SP, que foi deslocado para um espaço menor e sem estrutura. Guilherme, Chefe do grupo, explica: “Isso trouxe custos extras e reduziu nossa capacidade de acolher os jovens.”

Já Débora, presidente do grupo escoteiro, diz se tratarem de inverdades, "A Casa Cor não 'tomou' o prédio, o mesmo foi concedido mediante edital, previamente acordado com o grupo. A Casa Cor obteve autorização dos órgãos competentes para o uso do espaço, após alinhamento com a adiministração do parque."

Ainda complementa afirmando que a Casa Cor ajudou nos custos de parte da reforma da nova sede perto da entrada principal do parque. Ainda corrige Guilhereme sobre a capacidade de acolher os jovens do grupo: "Quanto ao acolhimento de mais jovens para integrar o grupo, isso passa por outras questões internas que não cabe expor nesta errata, pois seguimos acolhendo os mesmos jovens e crianças da sede antiga do Casarão."

No dia do evento, um grupo de escoteiros, formado em sua maioria por crianças, precisou atravessar o parque já anoitecendo, acompanhadas pelo chefe Guilherme, para encontrar seus pais em uma saída lateral do parque — consequência do tráfego intenso de carros.

Tentamos contato com a Reserva Parques pelo e-mail oficial de assessoria de imprensa, mas o endereço não existe.

O que sobra do churrasco

Os protestos não barraram a festa. O público pagou, o churrasco aconteceu, a fumaça tomou o ar. Escoteiros atravessaram o parque no escuro. O Conselho Orientador foi ignorado. E a Justiça, após pareceres técnicos, validou a concessão.

No fim, as verdadeiras memórias e raízes do Parque da Água Branca viraram apenas slogan de algo que ajudou a arrancá-las e a queimá-las.

Em atualização posterior à publicação desta matéria, a concessionária Reserva Parques respondeu aos questinamentos do Desconhecido Juvenal. Segue mensagem reecebida por e-mail na íntegra

Prezados,

Boa tarde.

Identificamos que sua mensagem enviada anteriormente acabou sendo direcionada para nossa caixa de spam, o que infelizmente atrasou nosso retorno. Ainda assim, gostaríamos de esclarecer alguns pontos importantes sobre a matéria já publicada.

Não procede a informação de que havia um parquinho infantil no local atualmente ocupado pelo estacionamento.

No que se refere ao grupo de escoteiros, o edital de concessão prevê a disponibilização de um espaço administrativo para suas atividades. Desde o início da gestão, a concessionária cedeu ao grupo uma sala em condições adequadas de uso, sem qualquer ônus, já que o espaço utilizado pelos escoteiros antes do início da Concessão, não possuía infraestrutura mínima e necessitava de revitalização, motivo pelo qual foi qualificado e, posteriormente, destinado gratuitamente ao grupo, garantindo a continuidade de suas atividades no Parque.

É importante ressaltar que todas as ações e eventos realizados no Parque passam pelos trâmites legais e contam com as aprovações dos órgãos competentes, assegurando que intervenções sejam feitas de maneira planejada, responsável e em conformidade com a legislação.

Reforçamos que todas as iniciativas da concessionária têm como objetivo qualificar a infraestrutura do Parque, ampliar a oferta de serviços e preservar sua vocação cultural, esportiva e de lazer para a população.

Diante disso, solicitamos a gentileza de que as informações acima possam ser consideradas em futuras publicações e, se possível, acrescentadas como complemento à matéria já veiculada, de forma a garantir ao público um quadro mais fiel da realidade.

Atencimente.

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