Cobertura
O filme de teor experimental, realizado com baixo orçamento e filmado inteiramente em película, se estabelece como uma jornada natalina de grupos marginalizados pelos cantos obscuros da metrópole. Após uma noite marcada pela brutalidade, eles encontram propósito no afeto perante a falta de justiça.
8 de novembro de 2025
Giovanni Giani (@thegiovannigiani)
Giovanni Giani (@thegiovannigiani)
É Natal e a escuridão da noite não dá trégua. Duas mulheres trans sobem uma montanha - no caso, dezesseis andares de escada de um edifício decrépito. Uma delas, Maya (interpretada por Sofia Riccardi), finalmente conseguiu juntar o dinheiro para a aplicação de silicone em uma clínica clandestina. Nós somos introduzidos assim ao mundo de A Cidade dos Abismos (2021), longa nacional co-dirigido por Priscyla Bettim e Renato Coelho, marcado pela retratação surreal de São Paulo como um agregado de sombras nas quais seus personagens, pessoas marginalizadas vivendo nas frestas da sociedade, fomentam seus pequenos bolsões de luz, e encontram ombros nos quais chorar quando a chuva inevitavelmente cai.
Pryscila foi convidada para um bate-papo no último dia 31 de outubro na unidade Mooca da Universidade Anhembi Morumbi como parte do programa Cine Encontro, idealizado pelo professor do curso de cinema Ricardo Matsuzawa e realizado em parceria com o Núcleo de Cinema Câmara Escura, gerido pelos professores Lucas Lespier e Juliana Monteiro, também do audiovisual. A proposta do projeto é conectar os universitários diretamente com realizadores do cinema nacional, almejando se tornar um lugar onde a troca de experiências profissionais e artísticas possam iluminar o caminho daqueles que pretendem embarcar na avenida esburacada que é a produção audiovisual independente.
Priscyla Bettim em diálogo com os professores Lucas Lespier e Ricardo Matsuzawa. Foto por: Giovanni Giani.
Professora, pesquisadora e realizadora, Priscyla Bettim começa a jornada que desembocaria em A Cidade dos Abismos de um jeito que ecoa a vivência dos personagens centrais da narrativa roteirizada pela cineasta. Nascida em Rio Claro, no interior de São Paulo, Priscyla emigra para a capital e começa a conviver no centro da metrópole, onde as noites compartilhadas ao lado da comunidade trans local se tornam rotina e oferecem conforto para aquela viajante recém-chegada, instantaneamente emoldurando esse imagético noturno que alimentaria a escrita do roteiro, processo que durou apenas 10 dias devido a familiaridade de Priscyla com o mundo retratado na história.
A figura do imigrante, deslocado de sua terra natal que encontra companheirismo na conexão com mulheres que assim como ele, não se encaixam nos padrões impostos pela cidade, se manifesta no filme como o personagem Kakule, um imigrante africano interpretado pelo congolês Guylain Mukendi. Nós somos introduzidos a Kakule durante sua rotina em seu estabelecimento, o Xangô Bar. O homem lava um copo que se quebra em suas mãos, abrindo um ferimento que sangra em baixo da água cuspida pela torneira. Ele não esboça reação, enfaixando sua mão de maneira estóica e calmamente coletando os cacos de vidro, enquanto seu sangue desce em redemoinhos pelo ralo do bar, sendo engolido pela cidade gulosa que devora sem piedade - seu coração pulsando com o sangue de mil cortes.

Kakule (Guylain Mukendi) limpa os cacos de vidro de sua pia. Reprodução Cinediário.
Filmar a obra em digital nunca foi uma opção para os realizadores. Priscyla e Renato, parceiros criativos de longa data, filmaram todos os seus curtas em película. Familiarizados com o Super 8, na hora da gravação do longa eles se diversificaram: a maior parte do filme é gravada em 16mm, com uma sequência musical sendo gravada em 35mm, utilizando uma câmera pertencente a Andrea Tonacci, nome consagrado do cinema marginal brasileiro que fez sua fama com o clássico Bang Bang (1971), na qual a mesma câmera foi usada. O Super 8 também retorna, espectralmente conjurando imagens de delírios que vazam de nossos personagens (a cidade aqui sendo um deles) e permeiam a narrativa. Um desses delírios explicita bem uma das principais referências dos cineastas: o trabalho da visionária pioneira do cinema experimental e surrealista Maya Deren, cujo nome batiza uma das personagens centrais. A sequência, filmada no Parque da Luz, evoca a imagem do espelho tão prevalente em Tramas do Entardecer.

Glória (Verónica Valenttino) segura um espelho de mão em uma sequência de sonho evocativa do trabalho de Maya Deren. Reprodução Cinediário
A preferência pela película vai além de uma questão puramente estética, se trata de uma decisão que altera completamente o fazer do filme. Diferente do digital, quando se opta pela película a produção passa a lidar com um recurso físico e finito, limitando a quantidade de tomadas e planos. No caso de A Cidade dos Abismos, um filme de uma hora e meia, a quantidade total do material utilizado pelos cineastas possibilitaria a gravação de apenas quatro horas e meia de filmagem bruta. Para amenizar possíveis imprevistos, uma pré-produção elaborada e meses de ensaios com os atores antes das gravações foram realizados como meio de amortecer a queda; os improvisos eram definidos e absorvidos no ensaio. Quando as câmeras estão rodando e a equipe inteira prende o fôlego, os atores ocupam-se de encarnar todas as nuances já familiarizadas durante a rotina de preparo.
A tensão inerente a esse estilo de produção pode parecer um inconveniente, especialmente para as gerações de cineastas que cresceram acostumadas com o digital, mas para Priscyla e Renato, suas particularidades são o atrativo principal. Implica uma presença de espírito maior de todos no set no momento de filmagem, e imbui a imagem gravada com uma preciosidade única, quase que mágica. É um processo alquímico, como nota Pricyla: uma transmutação da luz em celulóide que eterniza o plano gravado, frame a frame, segundo por segundo, o cravando no tempo como se entalhado em rocha. O misticismo não é acidental, faz parte da filosofia da cineasta, que cita o teórico francês Antonin Artaud e sua tese de que cinema é feitiçaria, com o poder de capturar as forças metafísicas. Maya Deren, assim, assume o papel de sacerdotisa, guiando seus discípulos bruxos em suas buscas pelo sonhar.
Maya não consegue aplicar o silicone. O procedimento é impedido pela notícia de que uma outra garota que passou pela mesma clínica está internada em estado grave com embolia pulmonar. Maya e sua melhor amiga, Glória (Verónica Valenttino), pegam o dinheiro e seguem em baixo de chuva para o Xangô Bar, onde Bia (Carolina Castanha) confessa para Kakule que o Natal para ela, desde a infância, sempre foi carregado de muita melancolia. Esse incômodo infecta o bar. Com planos contrastados e afastados, carregados pelo silêncio frequente de um espaço comunal que abriga apenas quatro pessoas, as sombras parecem a todo instante ameaçar consumir por completo todo o espaço entre os quatro cantos do quadro. Ao invés disso, eles bebem juntos. Maya paga uma bebida para Bia, que está passando por um término tumultuoso, e Kakule se serve “por conta da casa”.
A ternura compartilhada entre os quatro nutre uma humanidade palpável no meio de toda aquela escuridão. O Xangô Bar se torna, por um momento, um lar, que acolhe indiscriminadamente qualquer um que entre das ruas opacas da cidade em busca de proteção da chuva, de alívio da melancolia, e de uma dose de cachaça. O filme respira, seguindo para closes em Super 8 preto e branco de cada um dos personagens, reafirmando a presença de suas solidões, mas permitindo que elas existam em diálogo, um conforto que carrega e permeia a obra.

Bia, Glória, Kakule e Maya bebem juntos no Xangô Bar. Reprodução Cinediário.
A noite não têm um final feliz. Enquanto Glória se enturma com Bia, Maya vai ao banheiro. Dois policiais à paisana entram no bar, imediatamente carregando uma inquietação para dentro do ambiente. Um deles também vai ao banheiro. Quando Glória vai atrás de Maya, ao estranhar a demora, ela encontra a garota sangrando no chão. Ela morre em seus braços.
A partir daí, as sombras que tanto ameaçam o filme nos primeiros minutos ganham território. O luto e o desejo por justiça incandescem em Glória acima de tudo, que é assombrada por imagens de Maya que invadem tanto o seu sono quanto sua vida cotidiana, quando ela finalmente consegue voltar a trabalhar. Para Kakule e Bia, a morte da garota explicita em cores todas as suas inquietações sobre a metrópole; seus antigos relacionamentos e comunidades não são o suficiente para fechar a cortina sobre a verdade que se revela pela violência injustificada. O chão do banheiro ainda chora com o sangue de Maya, encharcado e reluzente, por mais que Kakule tente limpar. A cidade e seus cantos tornam-se pontiagudos, suas noites, ameaças, e seus regentes, déspotas. Mas no meio de toda a escuridão de seus abismos, o trio permanece junto, mesmo que seja apenas para ver o sol se pôr uma última vez.

Glória, Bia e Kakule assistem o pôr-do-sol. Reprodução Cinediário.
Muito do que inspira a abordagem da obra para com a cidade de São Paulo são suas influências do cinema marginal. O trabalho de Tonacci como previamente comentado, assim como as obras de Carlos Reichenbach (o eterno “Carlão”) e Luiz Rosemberg Filho também são citadas como essenciais por Priscyla, mas as inspirações do filme, além disso, se estendem para o mundo da poesia marginal. A primeira intervenção que deixa claro as raízes do longa nesse mundo é logo após Maya e Glória saírem da clínica do médico clandestino: a montagem corta para um close do mesmo enquanto ele olha diretamente para a câmera e recita o poema “A Piedade” de Roberto Piva, com o horizonte noturno da cidade às suas costas.
“[...] eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos”

O médico recita “A Piedade” de Roberto Piva. Reprodução Cinediário.
Piva, poeta gay que pertencia ao movimento beatnik e o da poesia surreal e experimental, foi essencial para a criação do imaginário de A Cidade dos Abismos. Priscyla, naqueles seus primeiros dias em São Paulo, conta que o trabalho do poeta lhe acompanhava conforme as noites na cidade infiltravam o seu inconsciente, especificamente o livro Paranóia. Outro nome pertencente à mesma geração de poetas experimentais que contribui para o universo do filme é Claudio Willer, que não só é citado diretamente como também faz uma ponta no filme como um jogador de pôquer em uma de suas cenas mais misteriosas, enquanto enuncia em voz off seu poema “O vértice do pântano”.
Além dos dois, o trabalho de Anderson Herzer também constitui uma parcela significativa para o imaginário de onde o filme bebe. Herzer, o primeiro autor trans publicado no Brasil, narra em A Queda Para o Alto seus traumas de infância, os abusos que sofreu nos seus anos na Febem, e os ataques transfóbicos que o acompanharam durante toda a sua vida. O poeta não viveu para ver seu trabalho publicado. Faltando um mês para o lançamento do livro, a recusa em um concurso na Assembleia Legislativa por conta de sua identidade de gênero lhe custa um emprego e a oportunidade de viver de maneira digna. No dia 10 de agosto de 1983, Anderson comete suícidio se jogando da ponte 23 de Maio.
O sermão no enterro de Maya é realizado pelo Padre Júlio Lancellotti, figura conhecida pelo seu constante e dedicado apoio a grupos marginalizados. A igreja, lotada de mulheres trans, escuta com atenção cada palavra. Arrigo Barnabé - que também assina a trilha do filme com Vitor Kisil - toca o órgão para estabelecer a cena. Priscyla conta que havia sido escrito um monólogo para o Padre interpretar, mas ao invés disso, ele optou por falar do coração. O resultado é uma das cenas mais emocionantes de toda a obra, em que o Padre Júlio reafirma a crença da obra no poder do amor compartilhado por aqueles nas frestas da sociedade, que se esgueiram pelos holofotes e encontram nas sombras seus lares. “Deus não rejeita ninguém”, o Padre enuncia, rejeitando a abordagem preconceituosa e mesquinha dos religiosos que se dizem fiéis aos ideais católicos, mas que cospem, rancorosos, nos colos dos marginalizados.

O Padre Júlio Lancellotti realiza no sermão no velório de Maya. Reprodução Cinediário.
Cinema, assim como o amor, requer certo nível de fé. A cena foi gravada em um único take, o qual a qualidade era impossível de determinar na hora porque o sermão do Padre Júlio emocionou o operador de câmera a ponto de lágrimas, o que acabou por embaçar o viewfinder. Priscyla decidiu não fazer outro take.
Após a morte de Maya, o filme corta para uma sequência simbólica inspirada por outro curta de Maya Deren, The Very Eye of Night. Sua silhueta em negativo dança livremente, sobreposta em imagens em preto e branco da cidade que se rearranjam de maneira violenta e caótica. A cidade se contorce em espasmos, esfumaçando, agonizando enquanto suas luzes tentam rasgar o oceano de trevas que vaza entre os planos. A cidade morre. Enquanto isso, Maya brilha incandescente, seus movimentos desacorrentados de qualquer inibição, seus cabelos voando selvagemente, chicoteando o espaço ao seu redor com a energia de cada novo passo. Livre. Eterna. Viva.
“O amor nos torna imortais, quem ama não morre jamais”. Assim, Padre Júlio inicia oficialmente seu sermão.

Maya dança. Reprodução Cinediário.
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