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No Dia do Cinema Nacional, a semana marca o fim de uma trajetória lendária e a continuidade de outra. Entre pirataria, resistência e estética, o underground reafirma sua centralidade.
20 de junho de 2025
Vito Forini (@_.ilegas)
Na mesma semana em que o Planet Hemp anuncia sua turnê de despedida e Don L lança o segundo volume da obra que o consagrou, o Brasil celebra o Dia do Cinema Nacional. A coincidência, longe de ser casual, escancara uma verdade muitas vezes silenciada: é no subsolo da indústria cultural que se forjam os movimentos mais duradouros, as estéticas mais desobedientes e as formas mais radicais de arte.
Lançado em 16 de junho, "CARO Vapor II – Qual a forma de pagamento?" dá continuidade à verdadeira mixtape, "Caro Vapor/Vida e Veneno de Don L", de 2013 que elevou Don L ao status de referência no Rap nacional. O artista, em entrevista recente à Folha de São Paulo, destaca que seu primeiro contato com samples veio enquanto vendia CDs piratas nas ruas de Fortaleza: “foi aí que cheguei a conhecer vários samples que eu viria a utilizar no [grupo de Rap] Costa a Costa”. A lembrança encontra ecos na profusão sonora de Caro Vapor I e II, marcando o despertar de uma relação com texturas sonoras e colagens que definiriam sua trajetória única.
Don L em foto de divulgação para "Caro Vapor II – Qual a forma de pagamento?". Foto: Divulgação
Essa trajetória ressoa no Planet Hemp, grupo que também nasceu da economia informal. Foi vendendo camisetas e CDs piratas que Marcelo D2 e Skunk se conheceram, ainda nos anos 1990. A formação do grupo, forjada entre a pirataria e a rua, é uma evidência de como o acesso alternativo — às músicas, às tecnologias, às redes de distribuição — foi determinante na construção de uma obra autêntica que desafiou as estruturas do mercado e da política por décadas.
Mais de 30 anos depois, a banda se despede com uma turnê de encerramento "A última ponta" que celebra um corpo de obra que nasceu na rua, cresceu na rebeldia e assumiu epicentro no cenário independente e mainstreaming.
A primeira formação do grupo carioca: BNegão, Marcelo D2, Rafael Crespo, Skunk e Formigão. Foto: Dani Dacorso
A sincronicidade desses acontecimentos — a despedida de um lado e a sequência do outro — reforçam a continuidade artística da cultura independente, onde o fim de um caminho é sempre a fresta por onde outro começa. E as semelhanças entre as histórias, fundam a pirataria não como um crime, mas como um sistema de formação cultural alternativo, um vetor de acesso, aprendizado e invenção.
No meio disso tudo, o 19 de junho — Dia do Cinema Nacional — serve como lente para ampliar a leitura. O Cinema Novo junto do movimento musical, estético e contra-cultural Tropicália, renovam as linguagens audiovisuais e musicais no Brasil dos anos 1960. Nascidos também do subdesenvolvimento, faziam da miséria uma característica formal, e não apenas temática. Glauber Rocha e Caetano Veloso, nesse sentido, compreenderam a escassez formal como uma força, uma característica da própria criação — princípio esse visível na biografia de Don L e na história de formação do Planet Hemp.
Gravações de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" em Monte Santo, sertão da Bahia. Dirigido por Glauber Rocha e lançado em 1964, é considerado um marco do cinema novo. Foto: Cinemateca Brasileira/Divulgação
Hoje, essa lógica persiste no underground brasileiro. Boa parte do que chamamos de “sonoridade independente” são na verdade modos próprios de operar impostos pela falta de falta de acesso a estúdios caros, à distribuição mainstream, ao circuito de festivais Assim, as produções DIY, os rituais do auto produzido, o empreendedorismo periférico mostram que a arte surge das bordas. O digital diminui as distâncias, mas não apaga a estrutura: seja nos set de filmagem improvisados e câmeras adaptadas dos anos 60, nos CDs piratas e fitas cassete dos anos 90 ou nos beatmakers caseiros e streamings da contemporaneidade, é no underground que germinam os movimentos que, depois, viram referência.
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