Cobertura
Visitamos um espaço de resistência na Zona Leste da capital paulista, onde os moradores fazem do teatro e da convivência coletiva um ato político.
6 de março de 2023
É por meio da comunicação que conseguimos nos conectar com outras pessoas. Através dela, compartilhamos nossos pensamentos e ideias e construímos relacionamentos significativos. Cultura e arte mostram-se formas fundamentais de comunicação, ao expressarem de modo mais empático, problemas e assuntos complexos.
No entanto, a arte muitas vezes acaba se tornando mercadoria e, com isso, o acesso a determinados formatos e programações se torna um privilégio, afastando cada vez mais a periferia e tornando a produção artística fora da lógica do mercado, marginalizada e preterida.
É neste sentido que surgem os movimentos de ocupação cultural, que utilizam espaços públicos ociosos e os transformam em locais de produção e difusão de cultura e arte abertos à comunidade. Inseridos num mundo cada vez mais individualista, esses movimentos representam uma forma de resistência aos processos de elitização da cultura, possibilitando que populações pobres e marginalizadas tenham acesso a esses equipamentos culturais..
Um exemplo deste tipo de iniciativa é o Coletivo Dolores Mecatrônica Boca Aberta de Artes, que, nos anos 2000, construiu sua própria comuna na Zona Leste. E em 2002, o mesmo coletivo ocupou o Centro Esportivo da Patriarca, que foi convertido em um grande espaço cultural onde ocorrem oficinas, exposições a céu aberto e apresentações de teatro.
É deste coletivo e seus projetos que essa matéria especial irá tratar.
Esta matéria só foi possível graças ao trabalho de campo do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc (CPF) “casas: espaços de produção cultural”, organizado pelo educador Edson Martins.
Nosso jornal ficou sabendo dessa iniciativa por meio de uma recomendação, e duas semanas depois estávamos às 9 horas, na sede do CPF no bairro da Bela Vista.
Lá, encontramos outros participantes. Trocamos ideia até o responsável pelo evento chegar. Não demorou muito e, em pouco tempo, já estávamos em um ônibus, que faria todo o trajeto programado, passando primeiramente pela Comuna Dolores, depois pelo Clube da Comunidade (CDC) Vento Leste e, já ao final do dia, nos trazendo de volta para o ponto de partida.
Dentro do ônibus, enquanto não chegávamos ao nosso destino, Edson nos explicava como ocorreriam as atividades naquele dia. Tratava-se de um trabalho de campo com intuito de fazer com que os inscritos do evento vivenciassem aqueles projetos sociais e sentissem os sabores e cheiros dos locais.
Edson contou um pouco sobre o Coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes. Ele destacou que o grupo está localizado no fundo da Zona Leste da capital paulista, depois do Rio Aricanduva, em uma região que carece de equipamentos culturais.
Uma das ações do coletivo foi a ocupação do Centro Esportivo da Patriarca. Contudo, antes desta ocupação, no ano de 2002, uma comuna foi construída em um terreno em Guaianases. Era para lá que estávamos indo naquele momento.
Após passarmos por todo o concreto da cidade de São Paulo e seu trânsito, enfim, a Comuna Dolores. Logo em sua entrada, encontramos Luciano, o idealizador do coletivo, que nos introduziu ao espaço. Nele, diversas formas de construção se misturavam, criando um importante ambiente de convivência, arte e cultura.
O coletivo é formado por diversos artistas, que atuam nos mais diversos tipos de mídia. Juntos, eles constroem esse polo de condução cultural e de autogestão. Todos moram ali, distribuídos em cinco casas, para as quais fomos convidados a entrar. Uma vez dentro, ouvíamos as histórias dos moradores e comentários sobre a arquitetura do projeto.
Para além de um espaço de moradia, a Comuna Dolores é — há 22 anos — palco de diversas atividades culturais, como a concentração da batucada Bloco Unidos da Madrugada e rodas de jongo. Assim, a comuna é uma ocupação cultural e resistente na cidade de São Paulo.
Todo o papo introdutório se deu em uma espécie de clareira, na qual havia uma roda de cadeiras e um café da manhã sendo servido na casa dos fundos. Luciano havia convidado as pessoas presentes para se reunir ali.
Ele começou se apresentando, dizendo que foi bancário por oito longos anos, mas que sempre sonhou fazer teatro.
O curso de Artes Cênicas na USP não era uma realidade tangível para Luciano. Ao invés disso, cursou jornalismo. Enquanto isso, trabalhou como garçom, vendeu cachorro-quente na estação Patriarca e ministrou aulas de jornalismo comunitário e teatro em Moçambique, Amazonas e na Paraíba.
Nessas aulas, ele sempre dizia “Vocês devem fazer algo com o que tem aqui”. Ao refletir sobre isso, percebeu que ele também deveria fazer a diferença no lugar de sua origem. Nisso, surgiu a ideia do Coletivo Dolores.
Há alguns anos, contou, Luciano participava de um espetáculo junto de dois outros atores, que mais tarde, junto dele, viriam a ser os fundadores do Coletivo Dolores. Esse espetáculo levava o nome de “Dores da Noite”, do qual veio “Dolores”. Juntando isso com o Boca Aberta — que fazia referência a um jornal que os envolvidos no coletivo tocavam no curso de jornalismo em Mogi Das Cruzes — e mecatrônica, por razões numerológicas, compunha-se o nome do coletivo.
No início, era constituído apenas de atores. No entanto, com o tempo, outros artistas como poetas, músicos e até mesmo videomakers passaram a fazer parte do time.
Em todo seu tempo de vida o Coletivo Dolores fez diversas peças de teatro e intervenções artísticas. Na palestra, Luciano nos contou sobre duas: “Armando Boas Praças” e "Elefantinho".
A primeira se refere a uma caricatura de um político real que se “apropriou” da reforma de uma praça feita pela comunidade. Essa peça girou em torno da reforma de outra praça. Contudo, desta vez, o político que ali apareceria seria o personagem Armando Boas Praças, político do fictício Partido Oportunista Brasileiro. Ele traria um busto de bronze com seu rosto para ser instalado no centro do espaço e, junto dele, viria uma placa explicando toda a história.
Já a segunda também se trata de ação teatral que gira em torno da construção de algo. O elefante em questão é uma estátua de 5 metros de altura, feita com chapas de metal e construída no esquema de mutirão. Em meio a aulas de yoga e acampamentos, o chifre ganhava a forma de uma foice e sua tromba segurava um martelo. Pequenos ratinhos representando as instituições burguesas (a igreja e os bancos) encontravam-se ou aterrorizados pela imponência do elefante ou sob suas patas. Ao final da obra, teve-se um verdadeiro monumento aos trabalhadores. Apesar de ter levado 16 dias para ter ficado pronta, a estátua permanece lá até hoje e, inclusive, foi adotada pela Torcida Antifascista do Corintithians, ganhando assim, o seu apelido “Elefantinho”.
Esses dois trabalhos representam o que o grupo chamou de “Teatro Perene” — ou seja, uma ação teatral que gira em torno de um objeto sólido que continuará existindo mesmo após o final da encenação.
Contudo, hoje, os membros do coletivo vêem essas duas ações como gasto de energia desnecessário. Naquela época, disse Luciano, os reacionários pareciam, de fato, menos ameaçadores. Hoje, a ultra-direita pede esforços maiores e melhores direcionados. No fim das contas, o Armando Boas Praças e o Partido Oportunista Brasileiro acabaram se tornando versões cômicas e limitadas da ameaça real representada pelo governo Bolsonaro e seu aparelhamento militar.
Dito isso, decidiram que era necessário concentrar esforços em medidas que pudessem fomentar a mobilização popular, dada a urgência da conjuntura. Sempre atentando para a linguagem, que deve dialogar com as massas e se valer de suas ideias.
Dessa forma, a comuna foi uma resposta à verticalização das cidades, que, segundo os membros do coletivo, leva ao distanciamento cada vez maior entre as pessoas. Assim, os esforços do coletivo vão ser direcionados à mobilização popular, para reagir aos desdobramentos desses movimentos do mercado.
Morador da comuna, Tiga, fala sobre a importância da linguagem para a conscientização de classe.
@rafael.botas
Logo ao fim desta palestra, todos já se despediam dos moradores e se dirigiam à saída. Uma vez no ônibus, assistimos novamente a paisagem mudar enquanto nos aproximávamos cada vez mais do nosso próximo destino: CDC Vento Leste
Logo que chegamos à Ocupação CDC Vento Leste, fomos guiados por um caminho que nos levaria à “arena arbórea” — um palco delimitado por árvores plantadas e uma arquibancada improvisada com pneus em um morro. Enquanto seguíamos Luciano, passamos por diversas instalações artísticas como placas de metal, contendo poesia de um festival passado e um enorme catavento de metal. Também passamos em frente aos galpões que hoje abrigam espaços de socialização, oficinas e o depósito do Bloco Unidos da Madrugada. Já na arena, Luciano nos contou a história da ocupação e nos falou sobre as aventuras artísticas protagonizadas pelo Coletivo.
Foto: 100Cílios ©
A relação entre a Comuna Dolores e o CDC Vento Leste é umbilical: ambos compartilham lá praticamente o mesmo tempo de existência — uma janela de 20 a 22 anos — e ambos os espaços foram pensados e construídos por pessoas que têm a convicção de que essa construção tem um caráter social e ideológico.
A comunidade é um agente ativo nessa dinâmica. O grupo de teatro e o bloco Unidos da Madrugada são um exemplo disso. O local que hoje abriga o CDC era um terreno baldio em posse do Estado, que não dava a este sítio uma função social. Já teve muitos usos que causavam desconforto aos moradores do bairro, como local de desmanche de carros, depósito de caixas eletrônicos e até uma biqueira. O terreno só teve função social, de fato, ao ser ocupado pelos residentes da comuna que foi fruto da luta política.
O CDC se encontra em situação de ocupação irregular desde sempre. E houve muita resistência de grupos conservadores que fizeram o possível e o impossível para barrar o teatro na periferia.
Queriam que o CDC fosse dedicado, única e exclusivamente, à prática esportiva. Isso atrapalhou, e muito, quando o grupo precisou discutir se construiria lá um teatro. Mas, ao mesmo tempo, gerou alternativas interessantes, como a tal “arena arbórea”, construída com a ajuda da comunidade.
Atualmente, os residentes da comuna têm planos de expandir sua área de atuação através de um teatro de containers. A medida irá acompanhar a agenda política dos envolvidos por mais vinte anos pensando desde a idealização até as futuras encenações.
Uma das dinâmicas propostas pelo coletivo durante as encenações era um experimento envolvendo escassez e gentrificação. Uma parte do público se tornava “Os Eleitos” e podiam vislumbrar um ato da peça que acontecia exclusivamente para eles. Essa intervenção tinha como premissa contar a história de um arquiteto da classe média, de nome “Insônia de Antônio”, que planejava empreendimentos em áreas valorizadas da cidade e implicava em demolir favelas. Esse debate complexo se tornou uma peça à parte. E no ato-festa os presentes comiam, bebiam e dançavam.
Em outra ocasião, esteve lá um artista plástico chileno chamado Cristian. Ele se encontrava em situação de vulnerabilidade, falava espanhol de maneira muito rápida, e arranhava pouco o portunhol. O seu material artístico era “basura”, lixo. O Maiman, que era um dos integrantes do grupo, o encontrou na rua, viu o trampo dele e achou sensacional. Esse artista relatou que estava na rua há um mês e que veio ao Brasil para uma exposição no Hotel Hilton, ali perto.
Acontece que ele não foi pago como havia sido combinado e não pôde voltar para casa. O pessoal do Coletivo o recebeu. Uma vez estabelecido, conseguiu entrar em contato com sua universidade, a de Santiago, e retornar para o Chile. Hoje, planeja voltar ao CDC para uma instalação, que é uma releitura do construtivismo russo, — no galpão.
Mas, na opinião do coletivo, o trabalho com mais repercussões foi “A Saga do Menino Diamante — Uma ópera periférica". Dividida em pelo menos meia dúzia de atos e com cerca de seis horas de duração, a peça foi pensada levando em conta o horário de funcionamento do metrô. Considerado pelo grupo de teatro como um sucesso de público, o evento contava com cerca de 500 espectadores em uma noite
Uma sopa que fazia parte do espetáculo era distribuída ao público. Existem planos para uma sequência, a se chamar “O Menino Diamante Contra o Dragão Vermelho”, que busca colocar em choque o individualismo neoliberal ocidental e o socialismo com características chinesas — Marxista e Confucionista — para debater os rumos e desdobramentos desse embate na periferia de um país da América do Sul.
Uma vez terminados os relatos, todos ali presentes começaram a circular livremente pelo espaço. Reencontrar velhos conhecidos ou explorar os galpões. Passados alguns minutos, foi anunciada uma grande feijoada. Coincidentemente, todos pararam o que estavam fazendo e se dirigiram correndo ao refeitório. Lá dentro, muito samba, conversa e comida boa. O pessoal do Bloco bebia cerveja e se trajava à caráter do Carnaval. Após o almoço, em pouco tempo lá fora, já eram dispostos os diferentes tipos de percussão que seriam usados para o desfile daquele dia.
No pátio, os tambores rufavam e o clima esquentava com cada vez mais gente maquiada, fantasiada e crianças espalhando espuma por onde passavam.
O mestre de bateria apresentava de carro de som e pedia agito. Latinhas eram abertas e cigarros acesos. As baterias já gritavam. A atmosfera na hora é inebria e eufórica, como se Baco em pessoa tivesse descido dos céus para uma festança.
Infelizmente, esse agito não pôde ser presenciado pelo nosso correspondente, pois já era hora de voltar.
Já no ônibus, retornando ao Sesc, Edson nos concedeu uma bela entrevista que pode ser considerada como síntese de tudo que aquele dia cheio significa.
Qual a importância desse tipo de trabalho de campo?
— A gente mora numa cidade onde as pessoas vivem muito isoladas. Esses trabalhos possibilitam que pessoas se conheçam e possam desenvolver projetos juntos. O tema deste trabalho é a gestão de pequenos espaços culturais. Muitos dos participantes são pessoas que têm em suas casas projetos voltados à gastronomia, teatro, costura, reza. Então, as pessoas moram nessas casas e nelas, desenvolvem projetos. Além disso, reúnem outras pessoas para festas, saraus.
Edson Martins dando depoimento para o Desconhecido Juvenal.
@rafael.botas
Então você quis integrar esses espaços distantes e desconhecidos, no sentido de aproximá-los das pessoas? Pois, como vivemos cada vez mais isolados, acabamos por não conhecer trabalhos culturais descentralizados.
Sim. Vivemos em uma cidade onde os espaços são espaços de consumo. Ou seja, qualquer lugar que você vá, são necessários recursos para suprir as necessidades desses espaços. Também vivemos em uma cidade — e a pandemia mostrou isso — cada vez mais verticalizada, com poucas casas. Este momento pós-pandêmico é um momento de encontro, no qual as pessoas querem se reunir. As pessoas estão precisando muito disso. Então esses espaços são uma alternativa também para o reencontro.
Sendo o Sesc uma instituição mais voltada justamente ao consumo — por exemplo, turismo social — como o Sesc recebeu essa sua proposta um tanto contraventora?
O Sesc é uma instituição que tem mais de 70 anos, precursora em trabalhos como de turismo social, terceira idade. É um dos primeiros lugares a desenvolver esses projetos. Porém, o que o Centro de Pesquisa faz não está relacionado às práticas do turismo. São feitos, na verdade, trabalhos de campo e estudos do meio. Há, primeiramente, um momento restrito na sala de aula, onde acontece uma discussão um pouco mais teórica e, depois, um trabalho de campo que proporciona conhecer pessoas e lugares. E no caso de hoje, conhecer os projetos propostos onde ocorrem as visitas.
E como você conheceu os projetos que visitamos hoje?
Esses espaços vêm de pesquisas que fizemos. Porém, a principal fonte são as próprias pessoas que nos recomendam. A partir daí, vamos até o espaço e o conhecemos. Analisamos o seu potencial e a importância de outras pessoas conhecerem esses espaços.
Você sempre trabalhou com isso?
Estou há 29 anos no Sesc, mas com 38 anos trabalhando com educação.
E o que te fez querer trabalhar com educação, em aproximar as pessoas através da cultura e trabalhos de campo?
É uma forma de intervir no mundo. Quando você trabalha com educação e cultura, você acaba acreditando que é possível uma transformação social através da formação das pessoas. Proporcionando momentos para que as pessoas pensem sobre a própria existência e o quanto elas são importantes para manter o mundo que a gente vive.
E tanto a Comuna como o CDC representam a concretização disso, não? Esse encontro de identidades através da permanência, resistência e produção não só cultural como também de todo um ideal de sociedade que difere do atual.
Exatamente
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