Cobertura
Durante exposição de graduandos no Espaço das Artes (EDA), estudantes de Artes Plásticas da Universidade de São Paulo (USP) relatam seus desafios e sonhos com a profissão.
7 de outubro de 2025
Natalia Clima
Natalia Clima
Uma ardência nos lábios surge depois de dez, vinte, trinta balões enchidos. As pontas dos dedos roubam o pigmento preto do látex, contrastando com o talco branco dentro da bexiga. Clara pede um band-aid para a unha machucada. Cacau se oferece para buscar um com a segurança do museu. Nikke de pé, distante, calcula sobre sua obra: Uma instalação de balões de festas pretos, colados com durex no teto de um pequeno anexo no EDA (Espaço das Artes). Fitilhos, presos nas bexigas, caem ondulados. A estática do plástico gruda no corpo de quem entra. No chão, luzes neon rosa. O efeito é uma imensidão sombria, ironizado pela fofura rosa
Nikke chama a instalação de “Fim de festa”.
O Espaço das Artes (EDA) era a antiga sede do Museu de Arte Contemporânea (MAC), hoje localizado próximo ao Parque Ibirapuera. Propriedade da Universidade de São Paulo (USP), o EDA está dentro da Cidade Universitária. Assim, seu acesso permanece, praticamente, restrito à comunidade acadêmica. O metrô mais próximo está a trinta minutos de distância, sendo permitido apenas ônibus específicos circularem dentro do campus. Quem possui o bilhete exclusivo da USP, não paga, quem não – pode arriscar ir a pé e correr o risco de ser barrado pela guarda.
“É um espaço público, é importante ocupa-lo” diz Nikke, sentada na grama, sendo entrevistada durante a ventania noturna. No meado dos seus vinte anos, a performer acredita em uma arte política, pública. Discursa sobre a necessidade de torcer zonas de conforto, trazer um incomodo via um ato expressivo na comunidade. Na última sexta de setembro, 26/09/2025, o EDA recebeu quatro exposições temporárias – a maioria curada por graduandos. Nikke vê uma oportunidade de reivindicar o espaço:
Cerâmica de Clara Moreno. Parte do conjunto “No alto do cume” (2025). Foto: Natalia Clima
Clara escuta a fala da parceira. Além de uma performance junto de Nikke, a estudante expôs uma obra própria: “No alto do cume” (2025). Coletânea de oitenta e seis peças de cerâmicas, fixadas transversalmente na parede, recobrindo um espaço de quase quatro metros. Com pigmentos amarronzados, as cerâmicas são pequenas protuberâncias tortas, cuja ponta é abruptamente cortada em uma invaginação semelhante a um ânus.
“Eu não sabia o que ia dar, eu só decidir fazer” narra Clara sobre seu processo criativo. “Me incomodo com o conhecimento acadêmico, sua infidelidade com a palavra.” a artista defende uma prática livre, inspirada no momento, menos teórica. Capaz de se adaptar ao momento e se desvencilhar de longos conceitos. A obra exposta, por exemplo, nem ao menos foi pensada para aquela expografia. Os curadores a convidaram e deram a ideia de criar uma parede de escalada com as cerâmicas. “De repente eu tinha oitenta e seis cus e não sabia o que fazer”, diz rindo.
Em um banco de madeiro, balões de festa, fitilhos e copos de bebida. Foto: Natalia Clima
Antes da abertura, encontro Nikke, Clara e Cacau para realizar entrevistas individuais. Uma reportagem sobre como é ser um jovem artistas, quais as tensões e inspirações. Passamos a tarde enchendo os balões para a instalação de Nikke. Cacau, com cabelinho curto e botas cano alto, puxa um canecão metálico da mochila e pergunta quem quer “Xeque Mate”. Receita caseira de rum e limão, guardada em uma garrafa quente de Guaraná. Outras meninas, também estudantes de Artes, passam pela sala, ajudando o quanto podem. Algumas desejam ser ceramistas, outras desenhistas, escritoras etc. Suas conversas variam sobre se é insano descolorir sozinha o cabelo, sobre relacionamentos, ou se vale a pena viajar até Guarulhos para trabalhar como assistente não remunerada de artista.
A maioria está no fim da graduação. Algumas fizeram intercâmbio, outras não. Algumas possuem contato com galerias, outras não. Independente, o peso das horas é inegável. Não há questão sobre continuar ou não fazendo arte, mas como? Em uma sociedade instável e restritiva, as dúvidas não deixam de surgir.
Beatriz Tottí, que apenas veio visitar a exposição e estava alheia à reportagem, compartilhou como deseja sair de São Paulo. Voltar para Varginha. “Esperava que fosse mais progressista” comenta sobre a licenciatura de Artes Plásticas. “Eles não pressupõem que o aluno tenha personalidade”. Ela deseja fazer arte com e para a população. Perguntada sobre trabalhar em galerias, responde que é algo distante. Cita a filosofia de Donna Haraway e os estudos multiespécies. Deseja realizar fotografias com animais, tentar se inserir no meio pecuário da sua região. Participar de editais públicos e privados, buscando tensionar a presença do agronegócio. Está repleta de imagens e ideias, mas não sabe ao certo ainda. Talvez conclua apenas o bacharelado, abandonando a licenciatura. Está cansada.
Clara Moreno cercada de balões pretos. Foto: Natalia Clima
Dentro do EDA, Cacau me guia até obras.
Duas portas de madeira separam o espaço expositivo do vestíbulo inicial, no qual há salas de aula e o anexo utilizado por Nikke em sua instalação. Há mais de oito espaços dentro do museu, cada um com diferentes alturas de pé direito e iluminação, permitindo diferentes formas de curadoria. Na noite em questão, houve uma divisão de quatro exposições diferentes. Em uma ocorreria um show de rock, outra se dedicaria para fotografias em preto e branco, uma sobre relação brasil-chile e, a última, contendo as artes das entrevistadas. Nela, tumultuavam-se pinturas figurativas a óleo, testes de acrílica em papelão, as cerâmicas de Clara; pequenas fotografias de nus. Havia, em uma cama estirada ao chão, com um boneco animaloide de seios e vagina deitado. Um rapaz, vestido como garçom, oferece em taças de champagne, urina coletada de todos os expositores. Questionados sobre a iniciativa de curadoria, os estudantes responsáveis gaguejaram entre o desejo de chocar o público e a vaga ideia de destacar o uso da cor na arte.
“Não penso na arte como linguagem, no sentido de um código único, específico” reflete Cacau. Ela comenta sobre o bonito, uma luz oculta que capta o olhar. Sentir-se atraída sem saber por quê. Sua obra “Erípia” (2025) consiste de três borlados circulares de concreto. Dois virados ao chão, um, armado ao céu. A pintura amarela desbota, revelando o granulado cinzento das peças. Três arrames de ferro rompem cada corpo – dedos raquíticos furando a dureza do material.
Estudantes ao redor da obra “Erípia” (2025) de Cacau Cabaça. Foto: Natalia Clima
A artista encontrou a obra na rua. Com a ajuda de um amigo e um carrinho de mão, resgatou as peças até o museu. O homem que a ajudou, um cenógrafo, disse que ela poderia reconstruí-los com isopor. Uma pintura detalhada e a adição de pesos traria um efeito similar. “Não teria saído da rua, senão” ela respondeu “iria perder a coletividade da rua. Essa coisa imediatamente reconhecível do dia a dia, um objeto simples”. Cacau se inspira na Arte Pop e na Arte Conceitual. Objetos massificados, repetidos à exaustão, unidos com o conceitualismo abstrato, além das definições imediatas.
Cacau compartilhou o desejo de sair de São Paulo. Realizar um mestrado na Bahia, Minas. Está cansada da cena paulista, hiper saturada. O circuito de galeria – sempre os mesmos curadores, mesmos artistas, mesmas obras. Chegaram a lhe dizer que sua arte não tinha personalidade. Cacau sente o desejo de não estagnar.
Há mais público fora do que dentro do museu. Na entrada, derrubaram a taça com xixi. Durante o show de rock, os grupinhos sentados na frente do museu, precisaram gritar para se escutarem. Planejavam se iam na festa da arquitetura ou para um bar próximo do metrô. Havia uma Lua em foice e os aviões que partiam, não encontravam nuvens. A equipe de segurança ensaiava descer os portões, a mente já na cama, em casa.
Nikke e Clara sentadas na grama, discorriam sobre sua performance. Transaram dentro de uma parede oca. Um microfone distorcia e projetava seus gemidos para o espaço expositivo. Quem passeava pelas obras, ouvia apenas grunhidos guturais – completamente alheio do que ocorria. “Isso também é um sinal de sucateamento” Nikke explica. Transar dentro de um espaço público seria um choque, mas ninguém se importava. O EDA não era o MAC. Não faz parte das nobres galerias paulistas. Quem expõe ali, não está na Bienal. Mesmo o sobrenome europeu da maioria, não possui valor nenhum além do microcosmo da arrogância pessoal. O Espaço das Artes era apenas isso, um espaço.
Entretanto, Nikke relata uma contradição encruzilhada. A liberdade de não ter o nome preso em galerias, contra o peso de não ter renda. O aparente escracho das obras expostas, contra todo o esforço, tempo e dinheiro investido em sua confecção. Uma arte extremamente teórica e conceitual, contra uma prática imediatista e contextual. A constante incerteza do que irá acontecer, e o empenho pessoal de simplesmente fazer acontecer. O isolamento do EDA permite sua reinvenção com atos de liberdade. Local em que a capacidade criativa não possui qualquer restrição.
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