Entrevista
O Desconhecido Juvenal visitou a paulistana Madre para conversar sobre seu manifesto anti-digital e a decisão de tirar sua obra do mundo virtual
15 de maio de 2025
Pedro Penteado
Houve um tempo não tão distante em que a música era, principalmente, um objeto palpável. Bolachões, CDs e K7s com encartes, artes e fotos que complementavam a sua imersão no disco, a transcrição das letras para ler e os créditos pelo trabalho de muitas mãos que envolve criar um álbum. Com as gravadoras e streamings impondo o meio digital e "on demand" como saída, isso foi posto em segundo plano, ainda que não tenha desaparecido.
O ponto de virada foi em 2015 quando, pela primeira vez no mercado nacional, o consumo de streaming constituiu a maioria dos usuários, de acordo com a pesquisa realizada pela consultoria Ipsos no mesmo ano. Hoje, essa fatia continua crescendo, de 2023 para 2024 o setor de streaming aumentou em 22,5%, um faturamento total de R$3,08 bilhões, como divulgado pelo relatório Mercado Brasileiro de Música feito pela Pro-música. Uma grana que muitas vezes passa longe de quem mais precisa.
Dentro de uma garagem numa simpática vila na Barra Funda, uma figura que ressurgiu na música propõe uma virada de chave, enquanto boa parte do mainstream se contenta com as regras do jogo. Essa virada passa pelas ideias de Luiza Pereira, agora conhecida pelo projeto chamado Madre, figurinha já marcada da INKY, banda onde cantou durante meados da década passada - e aprendeu o caminho das pedras.
O Desconhecido Juvenal foi até o início (ou fim?) do Minhocão, caçando a tal Vilíndie - uma mistura de Vila e Indie, visto a presença do estúdio em que ensaia e do Dinho do Boogarins no local -, nos arredores do Largo Padre Péricles, para conversar com a Madre. Recebidos em uma garagem inundada de instrumentos, moogs e pedais, nos sentamos em alguns bancos de piano sem encosto, para conversar sobre o seu manifesto anti-digital e a decisão de tirar Vazio Obsceno - seu primeiro disco como Madre - das plataformas de streaming, restando à obra apenas o plano físico.
Madre e sua icônica guitarra. (Foto: Amanda Aguiar/Reprodução)
O disco, gestado acidentalmente na pandemia, foi resultado da decisão de Luiza em aprender a tocar guitarra durante a quarentena. “Eu lembro que na época, comentei com a Mônica Gena, minha amiga e uma super guitarrista. Quando eu comprei a guitarra, eu falei pra ela : ‘Mô, eu comprei uma guitarra. Será que você não me dá umas aulas?’ Daí ela falou: ‘Cara, não faz aula. Vai na tua. Aproveita que você está com a mente limpa, que você não sabe nada, e compõe o máximo que você puder.”. Motivada, Luiza não só aceitou como concordou. “É muito legal os riffs que dá pra fazer desse jeito, os caminhos que você acha na guitarra, enfim. Porque pra mim, isso também faz parte da linguagem que o Rock tem e da linguagem Punk que eu gosto. Não como um gênero, necessariamente, mas na forma de fazer as coisas. Acho que isso traz um espírito importante também, sabe? Dá uma cara única pra música”, complementa.
Nesse período de reclusão, com a mente fértil como a de uma criança, para além de compor, Luiza foi cerceando algumas conclusões sobre o streaming. Uma dessas ideias foi o tratamento do artista como objeto, que afasta o trabalho de criação para o campo do hobby, uma abordagem que desconsidera as vivências, o capital cultural e as mãos que ajudam a moldar a obra até pari-la. Esses pensamentos acarretam em um público que toca no mudo apenas para entrar no Lastfm - para aqueles que buscam validação no repertório - ou em um trabalho que terá, em sua maioria, ouvintes mortos, os bots, para dar certa gordura aos números e ser mais atraente na vitrine do mercado.
Sobre isso, Madre martela: “O que eu já tive de amigo meu falando : ‘Nossa, mil streamings só?’ Falei: ‘Mano, o que vai mudar na fila do pão o cara ter mil ou um milhão?’ A qualidade da música é menor só porque o cara tem menos ouvintes? O pessoal enxerga muito esse lance de que tem que ter a validação do streaming, de gente ouvindo”. Mesmo indignada, algumas noções se perderam para ela. “Quando eu lancei meu disco [Vazio Obsceno], uma pessoa me sugeriu: ‘Por que não comprar play?’ Falei: ‘Vocês estão malucos? Vai totalmente contra as minhas ideias. Eu vou fazer o oposto disso.’ Até porque eu prefiro saber quem de fato é meu público. Que sejam 20 pessoas”, defende a artista.
A guitarra de Luiza virou sua companheira de pandemia e shows. (Foto: Fernanda Gamarano/Reprodução)
Madre prossegue a sua reflexão perante a situação atual sempre revoltada. A vivência de um mundo anterior, um lugar menos frenético e cético perante ao abstrato, foi alienado pela forma atual de ter acesso à arte. Aliás, acessar não, consumir. “A galera tá pirando. Acho que tem uma coisa de reeducar o público. Precisamos lembrar que música não é descartável. A música não é de graça, não é apenas um clique. As coisas demoram. Tem muita gente trabalhando. Então, tem que resgatar essa relação que eu falo que é uma relação erótica, também, com a obra... você abrir, sentir o cheiro do papel, ver o design, pegar o CD; ter essa relação e lembrar que aquilo é uma coisa a ser cuidada”. Enfim, resgatar o público desse transe virtual de que a música nasce pronta. Relembrá-los que é preciso muito sangue corrido para canalizar uma melodia e muito suor lavado para escrever uma letra.
Esse resgate do real não é apenas uma miragem utópica de Luiza, ela mesma percebeu que existe um mundo com terra firme fora desse oceano digital. “Conheci alguém que tinha meio que 20 anos no Circuito [Nova Música, projeto de levar novos artistas para outros públicos que a Madre participou em janeiro deste ano], que estava com uma pasta de CD. Falei: ‘Caralho, vocês estão ouvindo CD?’ e ele: ‘Pô, sim. Eu e meus amigos’”. Esse choque levou a guitarrista a avaliar o CD como opção pro Vazio Obsceno, como uma forma mais acessível ao vinil.
Essa miragem de Luiza pode ser, na verdade, um oásis. Segundo a pesquisa providenciada pelo Pro-música, o mercado de mídia física cresceu 31,1% em 2025, continuando a onda que começou desde o fim da pandemia, com o maior número desde 2017. São R$21 milhões em circulação pelo produto físico, mas ainda muito amparado nas vendas de vinil, que representam R$16 milhões desta renda. É um mercado ainda exclusivo, principalmente pelo vinil, que tem uma produção cara e depende muito do mercado internacional devido às matérias primas importadas. O CD, mesmo que na sombra escura do bolachão, pode se apresentar como alternativa acessível, “piratex”, de fácil confecção e rápida disseminação.

Os shows são os principais momentos para venda de produtos dos artistas. (Foto: Barbara Monfrinato/Reprodução)
“Caralho, a galera é muito álcool em gel mesmo, né”? Foi essa a reação de Madre quando um amigo se recusou a fazer um react de seu primeiro single, ‘Transe’, para ajudar na divulgação. “Eu tô falando de gente do Rock que ouviram a música e rejeitaram, porque acharam polêmico demais”. O conformismo no meio de um gênero transgressor foi um combustível aditivado para ela.
Movida pela combustão do espírito da arte, Madre ergue a bandeira da mídia física, visto que é mais viável de se estabelecer financeiramente dessa forma do que pelos meios digitais. Ela reparou que os fãs se engajaram. “No Circuito [Nova Música] eu vendi mil reais de merch. Então, quando que eu vou fazer mil reais em streaming sendo um artista independente?” Porém, para ela ainda falta mobilização, lembrar que a mudança é possível. Pois, segundo Madre
“Se isso aqui não tá funcionando pra gente, por que a gente não faz outra coisa? Por que não voltamos a resgatar essa realidade que existia antes do digital?”
Para a artista, a sensação de estar “todo mundo muito careta” é um grande empecilho, que impede uma mobilização do underground. “Muito medo” de algo desconhecido que impede uma mudança de paradigma.
Esse sonho ‘físico’ pode dar errado? Com certeza. E não é com apenas uma pessoa que se muda algo. A mobilização de um nicho pode não alterar as regras do jogo, mas pode melhorar a vida de alguns, botar mais dinheiro na roda e, até mesmo, iluminar a situação precária dos artistas independentes em relação ao sistema vigente.
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