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O coletivo que mostra a importância de nos unirmos para fazer a diferença na vida de quem precisa.
8 de setembro de 2025
Matheus Cerullo (@matheus_cerullo_rock_) e Vito Forini (@_.ilegas)
Matheus Cerullo
Sob a grande sombra dos eventos ocorridos entre os dias 19 e 21 de agosto no Teatro de Container Mungunzá, se faz importante entender o motivo pelo qual as pessoas lutaram para protegê-lo. Resumir o espaço à violência infringida pelo Estado é diminuir o valor cultural dele e fazer o mesmo que os planos da prefeitura de São Paulo pretendiam: entender aquele espaço público como uma oportunidade de negócio e não como um rico ecossistema social representativo de diversas classes sociais e lutas existentes há anos no centro de São Paulo.
Esse é a primeiro texto que fazemos de uma série de reportagens sobre o Centro de São Paulo, conforme o editorial que publicamos na última quinta-feira (04), marcando a estréia do Centro do Mundo. Pretendemos, através do nosso jornalismo afetivo e literário, explorar os muitos imaginários de arte-política urbana e reportar como eles acontecem e se relacionam na prática por meio da figura dos diversos coletivos artístico-políticos que atuam naquele território.
No dia 23 de agosto, o Desconhecido Juvenal compareceu ao Teatro de Container a fim de conhecer as várias histórias que aquele lugar agrega. Um dos coletivos que atua na região do teatro é o Mulheres da Luz, responsável por acolher e garantir o cumprimento dos direitos das mulheres em situação de prostituição no no território da Luz.
Imediações do Teatro de Container no dia 23 de agosto. Foto: Matheus Cerullo
O Coletivo Mulheres da Luz atua no Parque da Luz e arredores para garantir cidadania e direitos humanos às mulheres em situação de prostituição. Desde 2013, o grupo se dedica a estar próximo delas, ouvindo suas histórias, acolhendo as suas necessidades e construindo, junto, caminhos de cuidado e fortalecimento.
O público atendido pelo coletivo reflete marcadores sociais claros. De acordo com a sua fundadora Cleone Santos, “A prostituição de rua tem cor e é preta”. Além disso, são mais velhas, tendo a maioria já passado dos 40 anos, moradoras de bairros periféricos e com baixa escolaridade, uma realidade dura que resulta no enfrentamento de barreiras para acessar serviços públicos básicos.
Eduardo Fadel, voluntário e responsável pelo acompanhamento e atendimentos psicológicos das mulheres, explica que, dentro da perspectiva capitalista, esse demarcadores sociais, tornam aquelas mulheres "pessoas de não direito.”
Cleone marca sua presença nas atuações do coletivo através de seu legado. Foto: Matheus Cerullo
São atendidas no porão do Parque da Luz, onde acontecem rodas de conversa, oficinas de formação, alfabetização e cursos de artesanato. Há também atendimento de saúde, acompanhamento psicológico e encontros para falar sobre direitos civis. Tudo isso é feito com o apoio de dezenas de voluntários e parcerias com universidades e serviços de saúde da região central.
Hoje, atendem mais de 200 mulheres. Mas nem sempre foi assim. Tudo começou com Irmã Regina, Cleone e uma bicicleta que podia carregar livros.
Cleone Santos, é uma daquelas figuras maiores do que a vida, mesmo tendo falecido em 2023, sua presença é notada no coletivo que tanto ajudou a organizar. De igual lembrança foi sua mãe, que mesmo sem se envolver com movimentos sociais sempre se dispôs a ajudar todos no bairro onde viviam e inspirou a filha a trilhar seu caminho de solidariedade para com o próximo. A jornada de Cleone começa nas fábricas da região do ABC como operária, e logo em seguida aderindo aos movimentos sindicais em favor da classe trabalhadora. Ao se ver desempregada em meados da década de oitenta, passou a trabalhar com limpeza na região do Bom Retiro. Na época, sua situação era muito difícil, havia acabado um casamento conturbado e tinha três filhos para criar.
Como ela mesma conta em entrevista à BBC, seu envolvimento com a prostituição começou nesse momento de fragilidade econômica. Ela sempre frequentava o Parque da Luz para ler o jornal em um dos bancos. “Veio um homem e perguntou se eu fazia programa. Nunca tinha pensado nisso. Recusei. Mas eu voltava para cá, e esse homem insistia. Um dia aceitei. Fiz uma, duas, cinco vezes. Vi que ganhava cinco vezes mais do que no meu trabalho. Foi a transição de uma militante sindical para uma prostituta."
Até quando envolvida diretamente com a prostituição, nunca deixou de lutar e ajudar outras mulheres através de coletivos e iniciativas como a que viria a desenvolver ao lado da Regina Célia, ou como é mais conhecida, Irmã Regina. As duas se conheceram através do trabalho que Regina fazia na Pastoral da Mulher Marginalizada. “Me chamou logo a atenção o espírito, à maneira de ser de liderança da Cleone. Cleone foi uma mulher carismática.” Eventualmente, as duas perderam contato e trilharam seus caminhos, Cleone em São Paulo e Irmã Regina em Barbacena. Depois de um tempo, Irmã Regina precisou deixar de trabalhar com o atendimento de mulheres vulneráveis por problemas internos da pastoral e teve de retornar para São Paulo. Então voltou a realizar sua missão na congregação, conversar com as mulheres marginalizadas, oferecendo um abraço ou apenas uma conversa. “Como diria Caetano Veloso, eu estava sem lenço e sem documento”, em referência a canção “Alegria, Alegria” de 1967 de um de seus cantores preferidos. “Eu estava na Praça da Sé, eu estava na Praça da República, no Largo São Francisco, me encontrando com as mulheres em situação de prostituição. Acontece que eu vim para o Parque da Luz que eu já conhecia um pouco.”
A missão da congregação de Irmã Regina é estimular a educação, então sua amiga Cleone muito bem articulada contou que haviam mulheres analfabetas pela região. Como elas passam muito tempo sentadas pelos bancos da praça ou mesmo em pé esperando algum cliente passar, ensiná-las a ler parecia uma boa oportunidade para fazer algo novo. “Foi a nossa proposta de imediato. Cleone levantou e disse assim: 'Eu conheço o Seu Robson, ele tem biblioteca, nos empresta a bicicloteca!, uma bicicleta que vai em bairros, praças, ou regiões afastadas de São Paulo para estímulo de leitura."

Cleone e Irmã Regina, lado a lado. Foto: Reprodução do site Mulheres da Luz.
Partindo daí as duas começaram seu trabalho complementar, e foram ganhando cada vez mais relevância e notoriedade, sempre tendo em vista a educação e a saúde da mulher. Aperfeiçoando o coletivo a partir da vontade de fazer algo importante, partindo do nada e sem ter dinheiro algum para isso. Depois começaram a organizar reuniões mensais descontraídas e com alguns lanches, para discutir como cuidar do corpo, a importância de leituras, sociedade e sobre maternidade. Os encontros passaram a abraçar datas comemorativas para presentear essas mulheres, encontrando cada vez mais voluntários, entrosando o trabalho em diversas secretarias públicas que nem visibilidade dos problemas sociais na Luz tinham, comenta Regina.
A conquista do Porão no Parque da Luz se deu através de um trabalho penoso e difícil dentro da burocracia do Estado, porém rendeu essa primeira sede onde finalmente puderam expandir seus atendimentos e trabalhos mais complexos. Futuramente, tentaram expandir sua sede para um local maior, onde conseguiram alugar uma casa no Bom Retiro, um pouco mais distante da área de atuação do Mulheres da Luz, porém Regina percebeu a construção de um sentimento de comunidade, com as participantes se ajudando a se locomoverem até a região. Acabaram não conseguindo manter por muito tempo por conta do apoio e arrecadações necessárias para manutenção do espaço. Felizmente, a prefeitura forneceu um novo espaço para elas usarem por até 10 anos, que atualmente está passando por reformas e aceita contribuições para auxiliar na construção do espaço.
“Cleone está no meio de nós, é o legado que nós temos. Aquela mulher carismática. Cleone está dentro da prefeitura ainda. Cleone tem um nome numa ocupação lá em Diadema. Cleone até em Brasília. É uma mulher que se entregou ao bem a fazer o bem, era de total gratuidade. Não importava quem, como e quando.”
Quando o desconhecido Juvenal chegou ao Teatro de Container foi possível notar como o local trata todos seus visitantes, com igualdade e generosidade, inclusive partilhando refeição com os redatores. Você pode presenciar diversos microcosmos convergindo em um instante, característica refletida até na própria estrutura do teatro, com paredes laterais feitas de vidro, integrando os palcos ao seu entorno, um gesto simbólico incutido na arquitetura do local, tratando todos como iguais. Gesto de acolhimento visto até para com o pipoqueiro, Edson dos Santos, que leva seu humilde carrinho de pipoca para as portas do teatro, para fazer de forma ágil uma nova leva de pipoca antes da apresentação se iniciar.
Na ocasião, as Mulheres da Luz estavam comemorando a formatura do curso de artes manuais, encerrando um ciclo importante onde elas puderam desenvolver novas habilidades, importantes .para se verem como pessoas de direito.
“A prostituição leva a mulher a esse desmonte pessoal de sua personalidade, dos seus desejos, a mulher passa a negar tudo o que ela tem de bom em si e se negar inclusive de de tentar alguma coisa diferente.”, comenta Irmã Regina. Essa é a força desse coletivo, mostrar para as pessoas as condições sociais que colocam essas mulheres em situação de prostituição e ainda sim criar uma rede de apoio para elas, com iniciativas que as ajudam. “Ocorre o início de uma de um pensamento que a gente vai chamar de pensamento reflexivo. Pensar sobre si, sobre as suas atitudes e tal, tipo de quem eu sou, como é que as coisas são, porque que eu tenho raivas em determinado momento. Então tem é um processo que eu acho também, eu não gosto dessa palavra porque ela é muito jargão de ‘coach’, mas é um processo também inicial de autoconhecimento, né? De fazer, refletir, entender alguns pontos, né? E a gente faz o atendimento lá no porão mesmo, né?”
Se você tiver interesse em conhecer mais sobre o coletivo ou se voluntariar para ajudar, basta acessar seu site ou a página do Instagram.
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