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O Fundão também é centro - Deu Baile no Quilombar

Espaço de acolhimento, consciência política e cultura na Vila Gilda é ponto de encontro no Fundão da Zona Sul

25 de outubro de 2025

Texto: 

Eldra La Fonte

Imagens: 

Eldra La Fonte

Para um paulistano do centro, o Jardim Ângela é um cenário muito diferente. Se descreverem-se casas repousando à beira de um lago, ele refletindo azul suas águas entre as árvores e as algas, homens em charretes, e que um bar existe nesse cenário, muitos pensariam em um bar com cadeiras de plástico, pagodão e logo da Brahma ao lado do nome. O Quilombar quebra essa  lógica. 

A  Metrópole Paulistana tem diversas realidades no seu território. O limite daquilo que entendemos por uma área “civilizada” é exposto quando chegamos às margens. No caso desta reportagem, a Vila Gilda, localizada ao lado da Represa da Guarapiranga, onde está o Quilombar (@quilom.bar). 

No sábado, dia 20 de setembro, fomos convidades para trabalhar no bar na 5ª edição do festival Deu Baile, autodenominado “o bailinho mais quente da Zona Sul”. Mas de qual Zona Sul estamos falando? Adolfo Pinheiro, Borba Gato, Santo Amaro?

O “Fundão” enquanto casa

Conhecida popularmente como Fundão, a subprefeitura do Jardim Ângela é a maior de São Paulo territorialmente, e é esquecida todos os dias na construção de políticas públicas. Por ser uma uma região de periferia com uma dinâmica própria,as ofertas de emprego mais afastadas da quebrada fazem com que na prática, as pessoas só voltem para suas casas na hora de dormir. Um reflexo das imposições do centro.

Isso não só é insustentável como não é desejo dos moradores da região. Para nos deslocarmos até a região, foram necessárias mais de duas horas, que de acordo com frequentadores do Quilombar, é a média de deslocamento para conseguir chegar em qualquer centro financeiro, comercial ou cultural.

Mural com mensagens dos frequentadores. Foto: Eldra La Fonte

Otávio Pereira, dono e um dos idealizadores do bar, nos contou como foi fazer a fundação do espaço. “Bom, tinha um salão aqui no quintal da casa da minha família, que inicialmente era aquele “puxadinho” ali para uma renda extra, pra alugar, esse tipo de coisa. E começou um movimento de igreja evangélica querer alugar – um rolê meio neopentecostal; os pastores batendo na porta –, e aí, quando a água bate na bunda, a gente precisa se mexer, né?”, disse, afirmando como a coincidência de um contrato de rescisão de um amigo ajudou a ter o financiamento pro rolê. “Um amigo meu muito querido, que trampava 6x1 no Carrefour Express e foi mandado embora depois de uns anos trampando e pegou uma grana de rescisão que não era suficiente para a gente ter um equipamento de cultura, mas que minimamente dava pra gente fazer algo que fosse um butequinho na quebrada”

Por frequentar muitos espaços de discussão política, Otávio (junto dos outros idealizadores) pensou em criar um local que fosse farol de cultura mas ao mesmo tempo pudesse trazer discussões sobre a cidade e o bairro onde moravam. “Como jovem da periferia, passei a vida num território com problemas profundos de mobilidade. O acesso aqui para o Jardim Ângela, o segundo distrito mais populoso da cidade, com mais de 300 mil habitantes, que não tem transporte sobre trilhos até hoje, diferente do Capão Redondo e do Grajaú, que são os distritos ao redor [é muito precário]. (...) eram muitas idas e vindas pra precisar sair daqui pra acessar a cultura. Principalmente no retorno; a volta para casa era muito dolorida – do cansaço, da distância, da demora, do transporte precário… Então, surge a ideia [do Quilombar] em si nessas idas e vindas, dentro do busão, no sofrimento da volta para casa depois de uma apresentação”.

Cultura, política e blackness

Otávio, que sempre foi fã de boom bap, queria que o futuro bar pudesse dar espaço pra pautar política como o hip-hop fez desde o seu início. E de acordo com ele, esse foi o propósito que cumpriu desde 2019, sendo o espaço decisivo durante a campanha presidencial de 2022 e na municipal de 2024, quando possibilitou que o Jardim Ângela fosse uma das únicas duas zonas eleitorais onde Guilherme Boulos (PSOL), então candidato à prefeitura, tivesse a maioria dos votos no segundo turno.

“Pra mim é uma parada que fica sempre visível [a questão de mmateriais gráficos], de ter rolê, a galera na campanha 'Boulos de Juliete', todo mundo adesivado, não é uma coisa que precisa de saudação, de uma fala politizante no espaço”. De acordo com ele, isso faz com que em alguns momentos o movimento de hip-hop tenha “certa desconfiança” com relação ao Quilombar, mas que não limita seu potencial discursivo, especialmente pela falta de espaços culturais no Fundão que potencializem novos artistas do trap, funk, eletrônica e boom bap e que são da quebrada. “O rap consciente como forma de crítica social, eu acho que tem [sido] olhado com reconhecimento, com respeito, que a galera do funk não tem um terço (...). O rap tem mais reconhecimento enquanto cultura; enquanto produção intelectual. Eu vejo que a galera do funk, na relação com movimentos sociais, por exemplo, é olhado de cima pra baixo. Eu tenho essa impressão”.

O Quilombar se tornou palco de diversas lutas conforme os anos. Inclusive, com apoio do selo e gravadora Nova Guarda. Mais recentemente, também começou a ser montado, nos fundos do bar, um estúdio de gravação para possibilitar dar mais promoção aos artistas da Vila Gilda e região. Uma das demonstrações daconstrução alternativa do espaço é o evento que rolava no dia em que fomos conhecer o Quilombar.

Novo lugar, laços antigos

Esse clima de resistência e acolhimento fez com que o local fosse ideal pro Deu Baile.  coletivo, formado por Jim Beat (@jimbeat) idealizador e aniversariante no dia, e por outros colaboradores do território, visa dar mais visibilidade para artistas de diferentes tradições que moram no Fundão, se propondo enquanto itinerante. Era a primeira vez que estavam tocando no Quilombar.

De acordo com Jim, “A ideia do Deu Baile é, tipo assim, todos nós queríamos se promover, todo mundo trabalha com isso e a gente não tava conseguindo arrumar uns eventos. A gente se uniu num grupo, e a gente tava pensando: vamos organizar nossos eventos e tentar vender. Fora que a gente conhece vários artistas, todo mundo trabalha com um artista diferente lá do coletivo”.

Jim (Centro da imagem) na instrumentação do show de JovemBlues (direita) e VYRGILL (esquerda). Foto: Eldra La Fonte

Apesar do nervosismo, que Jim feliz por um veículo estar presente pra fazer a cobertura do evento, uma vez que habitualmente a mídia tradicional não chega até lá, ou chega somente em momentos específicos. 

É notória a falta de presença da mídia tradicional na cobertura de eventos na periferia, o que fez com que Jim tivesse certo nervosismo de início por não saber como se portar frente à “Imprensa”. Mas esse nervosismo desapareceu assim que as pessoas começaram a chegar, e os sets foram desenrolando.

Acolhimento e potência 

Quanto ao público frequentador, o propósito potencializador do Quilombar se mostra na prática: pessoas LGBT da periferia, a maioria pessoas pretas, além de trabalhadorus engajades no fim da escala 6x1 através do Plebiscito Popular, idealizado por organizações de esquerda para pressionar o Congresso Nacional pela redução na jornada de trabalho. Na parede, o mural com Marielle Franco e artistas do rap e do hip-hop evidenciavam o caráter político-cultural do espaço, uma existência que entende o que significa fortalecer a cultura fora do centro. Do outro lado, cartazes com referências da cultura de periferia que alguém da Vila Gilda com certeza entenderia.

Deu Baile na Pista

Primeiro tivemos o set de Johny Bigodi (@johnybigodi), que misturou nostalgia com R&B, tocando nomes como Aaliyah e Ginuwine. Depois, foi a vez do próprio Jim, que foi aplaudido e lembrado da sua data especial, e continuou na pegada nostálgica mas partindo para um lado mais dancehall e hip-hop

Em seguida, a primeira apresentação ao vivo dos artistas JovemBlues (@jovemblues) e VYRGILL (@angelinthenigth). Eles trouxeram um clima de bailinho flutuando por agudos suaves rolando em cima de uma batida ge.ntil entre o cloud rap e o alt r&b. A casa ficou animada. Apesar de não estar lotado, o Quilombar parecia palco de artistas experienciados, que sabiam conduzir a plateia e, principalmente, se divertirindependente do tamanho do público que conseguiam atrair.

Além de MC, D’oya é organizadora da Batalha da Revolta (@batalhadarevolta_), um espaço importante de discussão e formação política no Fundão, onde consciência social e batalhas de slam se encontram. Foto: Eldra La Fonte

Depois tivemos o set de Vivikyz (@vivikyz), que trouxe um contraste com os últimos artistas, trazendo uma pegada claramente LGBT com artistas cuir, e ritmos mais puxados pro dance, mas sem que perdesse a coesão do pessoal que tinha tocado antes dela,de modo a compor uma transição para o que seria a última artista da noite.

D’oya (@eudoya) encapsulou perfeitamente o propósito do Quilombar, trazendo músicas de autoria própria com influências do rap, boom bap e trap, e com consciência política em suas letras. Ao terminar seu show, trouxe uma mensagem: no dia seguinte, havia ato na Paulista contra a chamada PEC da Blindagem, que na prática impedia a prisão de deputados e senadores contra qualquer crime cometido por eles no Brasil. “Nós somos tudo de periferia, então temo que tá lá na Paulista”, foi o que ela disse em meio aos aplausos.

Periferias do Centro, centros na periferia

Após os shows, D’oya e Otávio comentaram de maneiras diferentes a importância não só de criar espaços de cultura na periferia, mas de articular realidades distantes e próximas ao mesmo tempo.

D’oya citou das trocas que teve com as batalhas na região do ABC, como as organizadas pelo coletivo Donas da Rua (@coletivodonasdarua), bem como o desejo de ter mais intercâmbio com os artistas e performers da região que fica à quase 50 km do Jardim Ângela. Quando perguntamos se já tinha feito show com perfomance, D’oya respondeu: “Tenho muita vontade. Quero muito trabalhar com uma galera dançando. Fazer coreografia”, e completou que adoraria poder contar com artistas do ABC pra isso.

Quando já estávamos na fase de limpar e guardar as coisas, o sol raiando, Otávio refletiu sobre como as vivências do ABC e do Fundão eram muito parecidas, e como a criação de espaços nas duas regiões visava quebrar uma lógica de deslocamento para os centros, mas de tornar os “centros” ao seu propósito inicial: um espaço de articulação e vivência do território, pensando primeiramente onde estamos e como impactar na mudança local.

E foi a partir disso que refletimos sobre o que significa o impacto do Quilombar. Não é só a promoção dos artistas, nem tampouco a promoção de ideais políticos. É um espaço de impacto que possibilita reflexão e construção comunitária, algo que pra jovens de periferia é tão essencial e escasso que este bar se tornou exemplo.

O dia terminou quando o amanhecer já não era mais horizonte: era a zênite solar das 7 da manhã. Depois de despedidas delongadas, um uber de uma hora levou a noite embalada nos sonhos do banco de trás. E quando se viu, a Guarapiranga não era mais apenas um local distante, mas uma casa onde o retorno era certo.

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