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Rito de ruído: quando a loucura é pública e a linguagem estilhaça

No Ouvidor 63, o sarau anárquico Vidraça funde palavra e barulho em rituais de colapso e reinvenção coletiva.

28 de junho de 2025

Texto: 

Vito Forini (@_.ilegas)

Imagens: 

Lola Mend (@olhossdevidro)

No antigo estacionamento do Edifício Ouvidor 63, o Vidraça ocupa o vazio com um rito de libertação: microfone aberto, caixas de som estalando, gritos, instrumentos desmontados. Criado no fim de 2023 por Igor Celestino e Victor Voyeur, o evento recusa curadoria, censura e venda de ingresso. “A gente luta justamente na contramão dessa lógica”, disse Celestino em entrevista ao Desconhecido Juvenal.

Para Voyeur, trata-se de um espaço de urgência: “É um espaço de necessidades. As pessoas chegam e sentem que podem gritar, podem destruir alguma coisa. Já quebraram espelhos, melancias, revistas pornô. A iconoclastia faz parte.”

A estrutura é mínima. Às vezes, uma instalação improvisada com colchonetes; outras, um piano preparado com folhas de partitura, ou apenas caixas de som, pedais e corpos em tensão. A cada edição, tudo se transforma. Em algumas, há projeções de vídeo, afters com DJs, gente dormindo no chão.

Mais tarde, naquela noite, este piano seria preparado e seu som modificado com partituras. Foto: Lola Mend

A palavra em curto-circuito

O Vidraça se move no confronto direto entre palavra e ruído. O Harsh Noise — subgênero extremo do Noise caracterizado pela ausência total de melodia, ritmo ou harmonia — colide com improvisação electroacústica, onde sintetizadores analógicos, cabos desencapados e microfones em feedback viram instrumentos de caos sonoro.

“A gente teve a ideia de juntar a poesia, a palavra com o barulho, né. E aí é simbólico até no sentido da gente querer trazer a nossa palavra mais à luz em meio ao barulho do mundo. E ao mesmo tempo a gente mostrar que a nossa palavra também produz um barulho muito grande”, afirmou Celestino.

Não há ensaio: há pulsão. Um expurgo pós-pandêmico de quem “precisava gritar”, como disse Voyeur. “Começou como acidente pelo acidente. Depois a gente entendeu que tava atendendo a uma demanda pulsional da nossa geração.”

Cada um com sua linguagem, Igor Celesitno e Victor Voyeur entram na improvisação. Foto: Lola Mend

Do aço ao caos

Sendo formado por moradores do ABC Paulista e tendo surgido no Centro Cultural Vira Lata Caramelo, em Utinga, o Vidraça também carrega uma herança visceral. “Sempre veio desse meio disruptivo. A arte do ABC sempre foi influenciada pelo movimento metalúrgico. Movimento punk. Movimento Hip Hop. Sempre”, explicou Voyeur. “Você é obrigado a criar esse imaginário sozinho, né? Então acho que vem muito desse lugar também.”

Após perder o espaço original, o evento circulou por casas culturais independentes de São Paulo — como o Niá e a Associação Cultural Cecília — até encontrar no Ouvidor 63 um epicentro possível.

“O Ouvidor é um retrato nu e cru de São Paulo. Nos últimos 10, 15 anos, sabe? Você tem pessoas que são da Bolívia. Do Chile. Tem pessoas de outros lugares do mundo. Todas convivendo num mesmo prédio. Todo fragmentado, né? A fragmentação do globo terrestre”, reflete Celestino.

Helder declamando trecho de seu romance "Je pauler seulement". Foto: Lola Mend

Do romance ao expurgo

Entre os estreantes, Helder subiu ao palco sem aviso, leu trechos multigênero de seu romance e se contorceu em sopros viscerais. “Foi a primeira vez que eu mostrei, assim, ao vivo, sem filtro”, disse.

Sua performance revela o caráter radicalmente inclusivo do Vidraça: ali, não importa se é um poema metrificado ou um grito bruto — qualquer fuga da lógica linear é bem-vinda.

A abertura estética e política atrai uma fauna híbrida: poetas, clubbers, músicos de grindcore, improvisadores livres, estudantes do ensino médio e performers experimentais. “Era engraçado que a gente foi sacando. Porque a Gustave, ex-batera do Maldito Jovem do Reggae, na primeira edição ela foi expor, e aí ela falou... Nossa, que curioso, né. Uma união de noise com poesia, duas coisas extremamente nichadas”, lembrou Celestino. “E que só foi crescendo e foi abrindo outros caminhos.”

O chifre do boi não é só do boi

No fim daquela noite de sábado, quando os amplificadores se calam e os corpos começam a se dispersar, algo permanece no ar — um resíduo de carne, palavra e ruído que não se dissolve.
O Vidraça não é só sobre barulho: é sobre fazer da linguagem um corpo coletivo, um organismo fraturado que insiste em se mover.

Faizkah declamando sua poesia em meio a gritos capazes de ensudercer todo um sistema. Foto: Lola Mend

“O grande boi está na minha língua”, alguém dispara. O boi pode ser encontrado atravessando boca, voz, alma, palavra e tragédia. De pé ou deitado, o grande boi sempre está presente. Assim como sempre tem alguém para carregar o piano, o boi carregado por quem ainda insiste em estar vivo é a própria linguagem. Corpo coletivo que tropeça, se arrasta, desaba, mas que se reinventa mesmo quando não pode.

Quando o boi levanta, levanta porque precisa. Porque sempre precisou. E com ele levantam as línguas, os corpos, desejos e estilhaços que se recusam a ser varridos. O boi levanta para lembrar que ele nunca foi só dele: “O chifre do boi não é do boi”, alguém solta no microfone. Porque o boi é de quem cuida. De quem carrega. De quem canta. De quem dança. De quem insiste em estar presente em festa. De quem faz questão de não faltar ao velório.

Ao fim da noite, uma certeza: o boi nunca morreu e nunca morrerá. Nem a palavra. Nem o corpo. Nem o desejo.

Na noite mais longa do ano, o Vidraça Coletivo lembrou — com ruído, poesia e colapso — que “os cacos, quando juntos, ainda podem refletir luz.”

— Leuni Denoni, em palavras de uma epifania compartilhada.

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