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A música independente ainda busca uma alternativa aos streamings

Dando continuidade à série DEBATE, perguntamos: diante de tantas injustiças, a comunidade seria a resposta?

23 de março de 2024

O músico independente teve sua voz ampliada graças à Internet. Desde os primeiros anos da rede, blogs de música, sites de download de mp3 e até comunidades de músicos nas primeiras redes sociais faziam o trabalho de disseminação sonora que uma grande gravadora fazia antes. Era o início da internet e ela trazia a esperança acerca de uma nova realidade, calcada na livre circulação e acesso à informação e à cultura.  

No entanto, tudo que tem a palavra “liberdade” assusta os figurões da indústria. Sendo assim, sob o pretexto de “combate à pirataria”, vieram em peso políticas de Estado visando cercear iniciativas vindas de pessoas anônimas, sem fins lucrativos. 

É diante disso que, em 2006, nasce o Spotify. Trata-se de uma tentativa de criar uma espécie de ‘pirataria legalizada’. No início, até dá certo. Mas, já na segunda metade da década de 2010, as motivações de mercado da indústria passaram a falar mais alto, e as plataformas de streaming começaram a ter grandes gravadoras — sempre elas — por trás. 

Tal mudança culmina nos acontecimentos recentes da compra do Bandcamp por uma licenciadora de música, a Songtrdr, e na mudança na política de pagamento do Spotify e do Deezer - sobre a qual já fizemos uma matéria. Outro efeito é a saída e recém reentrada de Neil Young na gigante do streaming.

Davi e Golias

É evidente que o músico independente passa inúmeros por perrengues. Falta regulamentação trabalhista e há pouquíssimo incentivo governamental. Os contratos são muitas vezes abusivos e mantém o músico refém de grandes tubarões da indústria. A lógica de criação de mercados consumidores pode sujeitar uma classe inteira — junto com seus sonhos e aspirações — ao ostracismo e à lata de lixo. 
vem passando por inúmeros perrengues. Falta regulamentação trabalhista e há pouquíssimo incentivo governamental. Os contratos são muitas vezes abusivos e mantém o músico refém de grandes tubarões da indústria. A lógica de criação de mercados consumidores pode sujeitar uma classe inteira — junto com seus sonhos e aspirações — ao ostracismo e à lata de lixo. 

Um dos maiores dilemas que a classe enfrenta atualmente é sobre como grandes serviços de streaming remuneram o trabalho artístico e a disposição latente do setor em defender os interesses dos conglomerados da indústria. Para resolver isso, seria necessária uma mudança estrutural — e muito foi tentado nos últimos anos, fazendo importantes questionamentos sobre a distribuição dos bens culturais que a nossa sociedade produz. Mas, afinal, como dar reconhecimento digno aos produtores desses bens?

Alternativas outsiders

É nesse ensejo que nos deparamos com a figura de Lisciel Franco, produtor musical que está por trás de bandas como os Detonautas. Em seu canal, Lisciel propõe a criação de uma plataforma digital para fomentar os músicos independentes. 

Ele também teoriza acerca de coisas como custos para assinantes, porcentagem de rendimento para os artistas, curadoria para selecionar possíveis trabalhos que seriam incorporados ao catálogo e viabilidade de migração de artistas vindos de outras plataformas.

Lisciel busca deixar claro que se trata de uma ideia embrionária. Os números são promissores, falando em até 80% do dinheiro arrecadado em assinaturas sendo destinado aos artistas do catálogo. Os 20% restantes seriam destinados aos custos de manutenção. Lisciel diz que não pretende ficar rico com a plataforma.

A ideia dele não é disputar em pé de igualdade com o Spotify ou outros serviços de streaming, nem garantir que os músicos possam viver de seu trabalho. O objetivo é continuar servindo como “renda extra”, só que de maneira menos injusta.

Porém, a plataforma tem um problema na sua origem: a curadoria proposta considera Rock, Jazz, Blues e o que chamam de “Música Tradicional Regional” como gêneros prioritários, e exclui vertentes de Rap e Hip Hop, além de gêneros inteiros como Brega e o Funk. Segundo Lisciel, os artistas desses gêneros não necessitam de iniciativa própria para crescer, já que seriam embasados pelo mainstream.

Além disso, Lisciel diz que artistas que produzem sozinhos em casa não movimentam a cadeia de produção musical, isto é, são egoístas e por isso, não deveriam ser incluídos na plataforma e, consequentemente, serem remunerados de forma justa.

Nem tudo são rosas…

É muito difícil ser objetivo quando o assunto é indústria cultural. Os critérios de seleção propostos para uma determinada plataforma, por exemplo, podem acabar seguindo para uma lógica restritiva. 

É preciso tomar cuidado para não perpetuar a marginalização de gêneros como Funk e Trap e não sedimentar ainda mais a falta de apoio que artistas independentes que produzem em casa sofrem. Se isso for feito, uma plataforma que conceitualmente pretende ser a voz do artista independente pode se aproximar das demagógicas ‘políticas de ruído’ dos velhos streamings, contribuindo para a crescente pasteurização sonora do que ouvimos.

Da mesma forma que gêneros marginalizados podem ser cada vez mais excluídos das mídias de difusão, eles também podem virar o novo mainstream. Hip-Hop é o exemplo mais latente: o gênero surge como uma manifestação popular e acabou tornando-se um som difundido amplamente pelas grandes gravadoras. Além disso, um estilo nascido em casa pode se tornar um gênero novo altamente difundido e repleto de repercussões, como é o caso da Pc Music.

Por isso, é importante não cair no achismo do senso-comum de que a culpa pela tragédia na qual artistas independentes de Rock e afins se encontram é de outros gêneros igualmente marginalizados. 

O que se observa, na prática, é um intercâmbio cada vez maior entre diferentes repertórios e estilos. É assim que se formam referências inovadoras e disruptivas. Num mundo onde o público é cada vez mais antenado e eclético, fechar os olhos para as diferenças é como sufocar o próprio ímpeto criativo. 

Equilíbrio

Ao mesmo tempo em que surgem ideias louváveis de alternativas para uma melhor remuneração e reconhecimento prático de artistas independentes, a cena auto-intitulada ‘underground’ precisa refletir se não perpetua os ciclos de ostracização da qual tanto acusa os veículos mainstream.

A remuneração mais justa aos músicos e a não dependência das gravadoras majors são uma necessidade, assim como serviços pensados para a realidade financeira do consumidor brasileiro. 

Mas isso não exclui a necessidade de debater os critérios de uma dita curadoria de artistas e se esses critérios dialogam com o que de fato se produz nas ruas, nos porões e nas quadras. 

Contradições estão por aí e fazem parte. O que não podemos é observá-las de forma passiva. Elas devem ser debatidas. Não apenas por quem é músico, mas também por aqueles que gostam, escutam e dizem apoiar a música independente.

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