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Fervo psicodélico em noite de Inferninho: mergulho em duas bandas da “nova geração da música independente” 

Na sexta-feira (18), o quarteto Tutu Naná e o quinteto (que às vezes vira sexteto) Tubo de Ensaio se apresentaram em mais uma edição do Inferninho Trabalho Sujo, na Ocupação Fervo, perto da estação Água Branca. Ali, a música conduziu histórias, seguindo pelos trilhos como um trem em alta noite.

25 de julho de 2025

Texto: 

Matheus Cerullo (@matheus_cerullo_rock_) e Vito Forini (@_.ilegas)

Imagens: 

Matheus Cerullo (@matheus_cerullo_rock_ e Eduardo Chagas (@efchagas)

Logo ao sair do metrô, você poderia imaginar uma noite insossa ao ver as sombras de uma árvore centenária ocupando a rua quase deserta, com poucas pessoas espalhadas pelas calçadas dos bares. Na frente do Fervo, as coisas pareciam mornas - até aí tudo certo, já que a Tubo de Ensaio ainda estava passando o som e a casa de show havia aberto às 18. A noite estava só começando. Os últimos ajustes eram feitos para o Inferninho nascer. Aos poucos, sangue novo invadia o espaço, escorrendo de todos os cantos da cidade. Começava a se acumular um público que refletia bem os protagonistas do palco: a nova geração da música independente. Ambos estão com trabalhos recém-lançados; Tutu Naná lançou seu Itaboraí no dia 06 de junho, enquanto a Tubo lançou seu primeiro disco, Endofloema no dia 16 de março. 

Ao organizar seus inferninhos, Alexandre gosta de reunir nomes da cena independente a dedo. Contando com artistas tão distintos no tom quanto próximos na abordagem experimental e inquieta, ele poderia dizer que seu trabalho além de sujo, é bem feito. No fim das contas, atinge um de seus principais objetivos - assunto que ele detalhou em entrevista exclusiva ao Desconhecido Juvenal

Nervos à flor da pele, olhos no Oriente

Após a passagem de som, a tecladista e mezzo-soprano Lorena Wolthers, da Tubo de Ensaio,  foi até a entrada da casa para fumar um cigarro de tabaco. Sua expressão não era das mais animadas. “Hoje o pessoal está meio nervoso”, comentou. Não era nada específico, mas a rotina intensa de ensaios e shows, deixando de lado o tempo para criar novas músicas, vinha drenando suas energias - e talvez as dos outros integrantes também. Havia algo a mais em seu olhar perdido na direção do palco, de onde tinha saído há pouco, algo que poderia ser atribuído à ausência de Gabriel Gadelha, saxofonista e flautista da banda. Um conflito de agenda o impediu de tocar naquela noite, mas sua ausência era um prenúncio do que viria: em breve, Gadelha partiria para a China para um intercâmbio, onde pretende continuar seus estudos em letras e aprender o sheng, um instrumento de sopro tradicional do país.

Em entrevista por WhatsApp, ele explicou a dedicação que espera ter ao instrumento e ao idioma chinês: “Então, é bem possível que eu vire um eremita na China. O eremita em chinês é ‘in’, que é esconder, e ‘dja’, que é um sufixo tipo ‘ador’ em português, tipo ‘nadador’. Então, é ‘Indja’, que é tipo ‘escondedor’, eremita. Então talvez eu fique escondido estudando.”

Apesar do afastamento, Gadelha faz questão de tranquilizar fãs e colegas das bandas das quais faz parte, Naimaculada e Tubo de Ensaio. “Pretendo voltar para as bandas quando regressar, em julho do ano que vem, e espero voltar com a cabeça mais aberta, novos horizontes, mais técnico.”

Além disso, planeja se conectar com músicos de seu curso na China “para gravar para as bandas que eu tenho no Brasil”. Assim, Naimaculada e Tubo de Ensaio ganhariam uma sonoridade única dentro da cena independente, enquanto o intercâmbio cultural, como ele mesmo brinca, “possivelmente justificaria uma turnê na China, né?”

Mesmo com a saída temporária de Gadelha, a banda aposta em criatividade e em diferentes recursos para manter a força de suas canções. “A gente está explorando mais como ocupar esses lugares que ele vai deixar. É uma chance de explorar esses outros espaços”, comenta Lorena.

Um exemplo desse processo está nos instrumentos e pedais criados por Lorenzo, guitarrista e responsável por construir as “geringonças” que emitem sons e ruídos utilizados nas apresentações. “Acho que a banda é muito autossuficiente”, diz Francisco. “O Lorenzo desenha, cada um toca mais de um instrumento, a gente mesmo se produz. Cada um tem um jeito próprio de compor, e a variedade de músicas já muda muito.”

Apito fazendo a função do saxofone de Gadelha; Lembra o som de pássaros e criaturas que se escondem na mata densa de uma floresta tropical. Foto: Matheus Cerullo

Entre mudanças e memórias, a banda segue em frente

O nervosismo já é algo que anda com a banda faz um tempo. Semanas atrás, na casa da Lorena para um ensaio pré-show, em um cenário repleto de pinturas, instrumentos, bancadas de trabalho, livros e vinis, os músicos viviam momentos de insegurança em relação à apresentação na noite seguinte e a execução de suas músicas - sentimento esse comum antes de qualquer show, especialmente em períodos de mudança na formação.

No caso da Tubo de Ensaio, o compromisso com a própria música se destaca, não apenas pela complexidade técnica das melodias, harmonias e tempos irregulares, mas também pela dedicação com que executam cada parte do repertório. “As pessoas botam fé no som. Geralmente as músicas não parecem promissoras em um primeiro momento. Mas a gente bota fé.” Diz Lorenzo Zelada, guitarrista, sobre a passagem de diversos integrantes pela banda e como ela se manteve consistente. 

A história da banda se entrelaça com as amizades formadas entre os integrantes e com o impacto deixado por ex-membros, revelando como o grupo se construiu a partir de relações sólidas. Esse processo ganhou forma logo após a pandemia, um período marcado pelo isolamento, que influenciou de maneira significativa o desenvolvimento de músicos tão jovens e criativos ao se reunirem para criar algo em conjunto.

A banda também destaca a importância de seu ex-vocalista e um dos membros fundadores, Ilegal, que participou da composição de diversas faixas e acompanhou a criação de muitas outras. Sua presença continua a influenciar a banda, inclusive na performance de palco da vocalista atual, Manu Cestari, que precisou aprender a se movimentar e a manter uma presença explosiva durante os shows, característica marcante de seu antecessor. Manu executa isso com naturalidade, aproximando a performance musical de elementos do teatro, área com a qual possui afinidade. 

Inclusive, novos projetos do grupo envolvem ideias antigas criadas em conjunto com ele e agora passam por um pente fino.

Uma de suas criações sua Drum Machine batizada de Júpiter que teve protagonismo no show. Foto: Matheus Cerullo

O espírito coletivo que transborda até a arte do disco

Como destacado por Manu, outro aspecto importante é, “Levar a brincadeira a sério e não ter medo do ridículo pelo complexo de épico” - em referência à canção de Tom Zé que satiriza o complexo de superioridade de alguns artistas. “É o humor e a nossa amizade que faz um álbum desses, então fico muito irritada quando não levam o brincar a sério”. 

O processo colaborativo é tão intrínseco ao grupo que até a capa do primeiro álbum foi desenvolvida de forma coletiva. Inicialmente, Manu, vocalista e também artista visual, assumiu a responsabilidade pelas ilustrações, mas as primeiras ideias não satisfizeram a banda. Foi então que decidiram adotar uma abordagem conjunta.

“Eu, a Lorena e o Lorenzo pegamos uma folha cada um e começamos a desenhar”, conta Manu, destacando as texturas e os formatos que buscou incorporar, em uma pintura guiada por uma estética predominantemente abstrata. A arte traz elementos que evocam a natureza, conceito que costura as faixas de Endofloema, nome criado por Francisco para representar uma natureza interiorizada (endo), distante da ideia idílica de pureza que muitas vezes se associa ao tema.

“É sobre como ela flui para dentro de nós”, explica Francisco, referindo-se ao floema, tecido vascular das plantas, responsável por transportar nutrientes, como se fosse uma veia. “É como o princípio ativo das drogas, que geralmente vêm de plantas, percorrem nossas veias e chegam ao cérebro. É quase como se o floema das plantas ficasse dentro da gente.” Apesar das referências, os integrantes afirmam que o uso de drogas não está presente durante a composição, ocorrendo apenas antes - podendo variar de algumas horas até meses antes, funcionando como uma reverberação tardia e criativa na hora da criação.

Integrantes da Tubo de Ensaio. Foto: Eduardo Chagas

Quando o som vira poção: a magia da Tubo de Ensaio ao vivo

Naquela noite de Inferninho, ao subirem no palco, qualquer nervosismo se dissipou instantâneamente e foi transmutado de forma alquímica no universo de excitação criado pela banda, que em conjunto, funciona como um grande organismo pulsante. “Esse universo de seres vivos e da natureza é como uma bruxa no caldeirão fazendo uma poção com elementos químicos e alcalinos. Quando a gente mostra esse álbum para o mundo, a gente está chamando você para tomar esse líquido do Tubo de Ensaio.”, pontua Manu.
Suas músicas são feitas de dualidades, seja através do pulso firme de Gabriel Ribeiro flutuando como um artrópode na bateria, ou na leveza de seus toques no metalofone, seja assistindo a performance energética de Manu e suas entregas vocais que flutuam de um controle cristalino a gritos rasgados, ou dos teclados de Lorena compostos de efeitos grandiosos e introspectivos dignos de Alfa Mist. Lorenzo entrega as mesmas sutilezas junto de Francisco, variando entre temas marcados e estrondosos ou camadas sonoras suaves, similares à flauta de Gadelha, que neste show teve de ter seu saxofone alucinante substituído por artifícios criativos da banda.

Isolamento, liberdade e gravações

A Tutu Nana é fruto de um legado maior da banda Jhon Filme, refletindo o não pertencimento, os músicos Jivago del Claro, Akira Fukai, Fernando Paludo e Carolina Acaiah elevam os sentimentos de isolamento para patamares exponencialmente mais ousados após experienciar a pandemia. O alienamento leva os músicos para um universo próprio e transborda para a visão de sua música. 
Em entrevista pelo Instagram, Jivago comenta, “Prefiro não definir nada, discussão de gênero só limita as coisas, não temos nada disso em mente quando estamos tocando, a banda é o que é, com os instrumentos que soam do jeito que soam. Pensar assim, pra mim, é a única forma de possibilitar a transgressão de algo na música.”

A flauta cortante de Carol atravessa a distorção suja dos instrumentos elétricos. Foto: Eduardo Chagas

Tal visão também é apoiada pela forma que gravaram seu álbum. No período de isolamento social todos viviam juntos na mesma casa, possibilitando uma grande liberdade para apenas tocarem juntos, sem maiores preocupações com outros compromissos da banda. Neste mesmo período, desenvolveram o método de gravação e composição mais eficaz e utilizado pela banda: tocar tudo ao vivo e partir disso para a edição das melhores faixas e momentos.  “Os melhores momentos destas gravações são recortadas pelo Fernando, em cima destes recortes adicionamos vocais e overdubs se julgarmos necessário.” 

Eles produziram tanto material durante seus “shows” privados que lançaram dois discos apoiados nele, Mono (2023) e Dark Rave (2024), e ainda possuem coisas inéditas com um futuro ainda por ser decidido. O que já é sabido pelos integrantes é que em 2025 teremos um novo lançamento da banda, composto de forma similar porém com novas nuances, característica importante de suas músicas. 

“Ele foi gravado ao vivo em 2 dias no estúdio Mameloki (dos irmãos Dardene). Nesses 2 dias tocamos com absoluta liberdade, ninguém levou temas nem ideias, apenas queríamos tocar.” O novo ingrediente no processo de criação foi estarem em um ambiente diferente do habitual, trazendo novas características para suas músicas. Os melhores momentos ainda foram recortados por Fernando e depois mixados por Yann Dardene, resultando em uma sonoridade que não estavam acostumados. 

Integrantes da Tutu Naná. Foto: Eduardo Chagas

Do sopro ao ruído: Tutu Naná em estado bruto e colorido

Após o show da Tubo de Ensaio, a Tutu Naná provou que o transe instrumental compartilhado pode emergir de uma sonoridade única, que mescla influências do samba-jazz, noise, rock alternativo, dream pop e pós-punk. Formado em Santa Catarina a partir do legado da banda John Filme, o quarteto lançou recentemente “Itaboraí”, um disco que demonstra como ultrapassar limites musicais quando a conexão artística vai além do palco, transformando a música dos quatro em algo orgânico e vivo pelas performances já fazer parte de seu processo criativo. 

Quase sem palavras ou olhares, eles abrem caminhos sonoros que começam nos dedilhados delicados da guitarra de Akira Fukai, passam pelas linhas profundas e sinuosas do baixo de Jivago Del Claro, e ganham textura nas vozes entrelaçadas dele e da vocalista Carol Acaiah - que, de vez em quando, surpreende ao puxar a flauta transversal para guiar ou soltar a tempestade sonora em momentos de êxtase. Tudo isso impulsionado pela bateria vigorosa e fragmentada de Fernando Paludo, cuja técnica parece fundir a precisão de Jack DeJohnette com a energia crua de Ian Paice, criando batidas hipnóticas que se estendem em loops com vocais distorcidos entre as faixas.

Cada show é uma imersão em um transe renovado, e não foi diferente na estreia do Inferninho Trabalho Sujo no Fervo, quando o público se reuniu próximo aos trilhos do trem na Água Branca para uma noite de pura intensidade musical.

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